domingo, 28 de março de 2021
Os Anjos Têm Olhos Azuis
sexta-feira, 26 de março de 2021
Sem condições
Desde pequena ela ouvia
o pai
o avô
o tio
o irmão
o vizinho
com aquelas condições esfarrapadas deles
“Quando eu voltar, eu faço”
“Se eu melhorar, conserto”
“Quando eu chegar, eu lavo”
“Se eu animar, ajeito”
“Quando eu sair, eu busco”
Tão essenciais
em seus sérios serviços
viris em seus não-me-toques
inquilinos da preguiça
curtindo e emporcalhando a casa
prometendo só de fachada
Sua Mãe
A Avó
Sua Tia
A Irmã
A Vizinha
sempre forçadas ao “e”
sem condicional nem escolha
o banheiro e as panelas e os quartos e as crianças e as roupas e as tarefas e as compras e a segunda e as contas e o domingo e o janeiro e o marido e o dezembro e o choro
mesmo sem tempo areavam e coziam e limpavam e cuidavam e lavavam e faziam e pensavam e pagavam e se davam mesmo doentes não paravam
(e odiavam também, o tempo todo, porque ninguém pode com tanto amor)
Pra não repetir tanto “e”,
Sara casou com Murilo,
que não botava condição.
Tão sensível o professor.
Mas também não dividia.
A ajudinha minguando dia a dia.
Ela, que só queria usar um “se” e um “quando” ao menos de vez em quando,
tá igualzinha
À Mãe
À Avó
À Irmã
À Tia
À Vizinha.
Sem condições.
O que será da filha?
Maria Amélia Elói
Imagem: "A leiteira", óleo sobre tela, de Johannes Vermeer
quinta-feira, 25 de março de 2021
A genética prática dos pastores
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Abençoado! Um sentimento de bem-aventurança cintilava-lhe no íntimo. Desfrutar dos bens necessários, do respeito dos outros, de felicidade. Tudo isto Deus e a Igreja Dele trouxeram e providenciavam continuamente a Rúben, o atual nome de Amadeu Rodrigues.
Antes, tinha sido vendedor de seguros; depois, de apartamentos. Finalmente, um bendito dia, acompanhara um colega a uma sessão daquela Igreja. O amigo não o enganara: aquele meio prometia possibilidades imensas e não imediatamente percetíveis. Havia no entanto que aprender a Bíblia a fundo. O Livro sagrado era a origem, a ferramenta e o objetivo. Seguindo a Bíblia, tinha-se acesso a conhecimentos de todo o tipo, desde as grandes revelações das origens, às verdades da vida; desde a mediação transcendente do saber cósmico, ao domínio das pequenas atividades quotidianas. Rúben empenhou-se a fundo. Leu-a em poucos meses, em jornadas pela noite adentro. Frequentou sessões de aprofundamento, apanhou cada argumento a aplicar a cada questão mais polémica.
A ascensão na hierarquia foi rápida e prometedora. Habituado a interpretar sinais faciais e conhecedor de outras atividades que lhe tinham exigido capacidades de argumentação e de persuasão, em breve integrava a elite da Igreja. Fazia pregações memoráveis, citava partes da Bíblia, mostrava como ela continha, já há milhares de anos, grandes conhecimentos que, só mais tarde, os Homens pensaram descobrir, e já predizia muitas das descobertas atuais: a Bíblia indicava onde estavam localizados os poços de petróleo, chamando-lhe betume; antecipava claramente o submarino, com Jonas a viajar no ventre de uma baleia; e o avião, com Enoch a ser levado para os céus por um carro de fogo; profetizava as missões humanitárias, com o lançamento do maná; e os bombardeamentos, com a destruição de Sodoma e Gomorra. A seguir às predicas, Rúben incitava os doentes e os mal-amados a pedirem a cura ao Senhor, em paroxismos de aflição coletiva e algumas curas milagrosas. Por fim, pedia o dízimo, tão justo e necessário que até Moisés o colocara na Lei.
Se em tempos mosaicos o dízimo era dado em géneros, no século XXI mais valia que os aflitos da cidade não andassem carregados com verduras ou criação. O dinheiro transporta-se com muita facilidade e também com prontidão se separa nas quantias necessárias. Era o dinheiro que fazia viver e melhorar a Igreja do Senhor. E os seus ministros. Nem em tempos de especulação imobiliária o então Amadeu vivera com tal bênção económica. Habituou-se a boas refeições, primeiro, e depois a boa roupa e bons carros. De bem-aventurado era o seu estado de espírito.
Rúben nunca deu guarida a qualquer pensamento de remorso. Sentia-se a prestar um serviço — o mais importante —, trazer esperança ao coração dos desesperados. Pela vontade do Senhor. E como ele o fazia bem!
Como primeira prioridade, o Homem procura alimentar-se, sobreviver. Por vezes, consegue-o, em tal quantidade e com tal facilidade, que a anterior necessidade começa a ser soterrada pelos apelos do estado de abundância. Então, acumular, esbanjar, experimentar o exagero do luxo e da luxúria ganham foros de estilo de vida. A luxúria, ah, a vertigem dos sentidos!
Cedo, Rúben percebeu que seria fácil obter sexo naquela mole de mulheres carentes e sugestionáveis. E bem percebia como era fácil estender o clima coletivo de carências individuais a um estado de espírito de ajuda mútua. “Temos de ser uns para os outros, neste mundo tão cruel.” “Temos de ver o que cada um dos nossos irmãos precisa.” “Eu preciso que o Senhor me ajude, mas, e eu posso ajudar alguém?” “Será que posso ajudar o meu irmão?” “O que é que ele precisa?” “O que é que eu posso dar, eu que recebo tanto do Senhor?” E, se não se via a aceitar intimidades com a maior parte daquelas mulheres, outras havia a quem podia abrir exceções e, solenemente sonso, aceitar o dízimo em géneros…
“Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.” Dinheiro a rodos, sexo até à exaustão, o que faltava? Nada, ou quase nada.
A dica para o patamar seguinte veio de um simples programa de televisão sobre a vida selvagem. Naquela noite, mostravam-se técnicas de manha e embuste usadas por vários animais, para que os seus genes chegassem em maior quantidade e segurança à geração seguinte. Sentiu uma iluminação ao perceber como uma simples ave desenvolveu procedimentos de dissimulação e parasitismo, para que ingénuos casais de minúsculas carriças chocassem os ovos e alimentassem as crias de uma espécie bem maior: o manhoso cuco.
Hum, espalhar o seu sangue pela população, olhar a multidão de fiéis na sala da sua assembleia e saber que inúmeros deles eram seus filhos secretos, a crescer felizes e saudáveis, sem ter ele de se sacrificar nas prosaicas tarefas de levar bebés à vida adulta! Muitos bebés; muitos adultos, também eles a propagar o seu sangue. Era, sem dúvida, um patamar apetecível. Um cúmulo de vida.
Um pormenor, no entanto, parecia poder complicar esse intento: Rúben era o único ruivo, numa comunidade maioritariamente de cabelo escuro. Nada a que o Senhor e a sua palavra não pudessem fornecer solução. Pois não explica a Bíblia, no capítulo 30 do Génesis, como procedeu Jacó, certamente com a inspiração do Senhor, para obter vantagem na divisão dos rebanhos, quando quis terminar o contrato com o sogro, Labão, e afastar-se para terras mais a ocidente com mulheres, filhos, escravos e rebanhos?
Combinou com o sogro que ficaria com o gado malhado, enquanto o pai das suas mulheres, Lia e Raquel, ficaria com o de uma só cor — ovelhas brancas, cabras negras. Aceite o trato, Jacó colocou varas nos bebedouros, às quais tirara partes da casca. Quando os rebanhos vinham beber e as fêmeas eram aí cobertas pelos machos, ao emprenharem com os olhos postos nas varas às manchas vinham a ter crias malhadas. Pelo contrário, quando Labão quis um trato inverso, Jacó colocou nos bebedouros varas de uma só cor; e as crias passaram a nascer, maioritariamente, de uma só cor. Com este estratagema, obteve Jacó um rebanho muito maior do que o do seu sogro, para glória do Senhor.
Assim também Rúben esperava vir a ter um rebanho de filhos apreciável e não lhe era difícil imaginar-se um patriarca bíblico. Se Jacó, com duas mulheres e duas escravas tivera doze, quantos poderia Rúben vir a ter, com tanta mulher na comunidade? A Bíblia continha todo o saber do mundo, todas as soluções, para glória do Senhor e dos que O seguiam. Aí vinha ela de novo em auxílio do abençoado servo do Senhor.
A pregação de Rúben alterou-se subtilmente; passou a enaltecer a vida de família, a bênção de uma prole, a excelsa graça de continuar-se nos filhos. Passou a ser mais permeável a aproximações de irmãs menos apetecíveis, desde que em idade fértil. Só tinha dois preceitos incontornáveis: não usar preservativo, ou furá-lo previamente; e colocar sempre uma peruca negra, argumentando que queria imitar o Senhor, tanto quanto possível. Se a técnica resultava com as ovelhas e as cabras de Jacó, com certeza que também resultava com o rebanho do Senhor.
Muitas gravidezes depois, algumas das quais tinham constituído autênticas impossibilidades nas contas de cabeça das neo-grávidas, mas que Rúben se encarregava de encorajar, por serem certamente a vontade do Senhor, começou a perceber-se que estavam a nascer vários bebés ruivos. Surgiram dúvidas, interrogações, tentativas de explicação: Influxo transcendente trazido pelo inspirador pastor? Sinais de algum evento miraculoso? Alteração somática induzida pelo estado de beatitude alcançado no local santo da igreja?
«Não devem ter conseguido tirar da ideia a cor forte do meu cabelo», presumia Rúben, surpreendido.
Quando já se tornava difícil atribuir a singularidade capilar a causas metafísicas e antes que o seu rebanho em disparada o dizimasse, Rúben pediu à hierarquia transferência para a Escócia, terra de ruivos, onde certamente seria mais fácil continuar a espalhar a palavra do Senhor e a aumentar a Sua Igreja.
Joaquim Bispo
*
Imagem: Bartolomé Murillo, Jacó põe as varas ao gado de Labão, c. 1660–1665.
Museu Meadows, Dallas, EUA.
* * *
terça-feira, 23 de março de 2021
DORES E AMORES
Ajeitada na velha
cadeira colocada na calçada da pequena hospedaria que administra, Carminda observa
a noite que cai. O costumeiro xale a lhe cobrir os ombros, os pés metidos em
sapatos de pano, aspecto que em nada lembra a menina cheia de ideias que foi um
dia. Desolada, de cabelos brancos, opacos, olha o movimento rotineiro das
pessoas da vila. Em intervalos longos, os carros passam. Lentos. Mas, mesmo
assim, a poeira da rua pouco cascalhada incomoda os olhos. Acende um cigarro,
contrariando a ordem médica. Não quer saber. Atingiu uma idade em que apenas
atende as próprias vontades. As mais simples. Para as outras, já não há espaço.
Sonhou tão alto. Não
foi infeliz, mas deveria ter nascido num mundo mais avançado. Sentia-se adiante
no tempo. Aquele lugarejo tolhera seus horizontes. Traz tanta coisa no peito,
tanta fala engolida, mas, ali, nem as opiniões podiam ser externadas. Ela sempre
foi diferente, ninguém compreenderia. Só o marido, companheiro dos voos
sonhados. Voaram, ainda que só em pensamento.
Pensa nos pais. Estrangeiros,
fascinados pela promessa de conquistas aqui, nesta terra, cruzaram o oceano a
bordo de um navio apinhado de esperançosos, desembarcando em Santos, no ano de
1918. Na bagagem, força de trabalho e sonhos. Prosperaram. E testemunharam que conquistas
não são apenas riquezas. Foram felizes, ainda que por pouco tempo, mas foram.
Tiveram duas filhas: Angelita e Carminda. Lindas, saudáveis. Certamente, as
maiores vitórias.
Época de grandes
epidemias, a mãe, de início, resistiu a um acometimento, mas não teve a mesma
sorte quando enfrentou a escarlatina. Dias e dias de delírio, febre insana. Não
resistiu. As meninas entravam na fase da adolescência. O pai, caixeiro-viajante,
sem alternativa, internou as meninas num famoso colégio que ficava na Capital.
Instituição renomada e dirigida por religiosas.
De início, tudo foi
assustador. A falta da mãe, do quarto, da casa, das refeições alegres, das
brincadeiras, das histórias contadas antes de dormir. Mudança difícil para ser
assimilada assim, bruscamente. De repente, tudo passou a ter horário fixo,
inflexível. Diferente da complacência da mãe. Não havia possibilidade de
alterar nada, absolutamente nada, apenas seguir em frente.
Adaptaram-se ao
internato. O requinte do ensino era prioridade da instituição. Era oferecido,
além do estudo acadêmico, um leque de atividades. Aprenderam: costura, bordado,
pintura, culinária, boas maneiras. Inteiraram-se da literatura, eram leitoras
vorazes. Dedicadas, interessadas, exemplares, não foi difícil conseguirem uma
convivência amistosa.
Aos domingos, quando
não estava viajando, o pai sempre as visitava. Conversavam, ganhavam docinhos,
balas. Alegria nas chegadas, tristeza nas partidas. E os anos se passavam. Para
as meninas, o internato era de janeiro a janeiro. Não iam para casa nem mesmo
nas festas de final de ano. Aliás, não havia casa. Com o tempo, o pai decidiu
vender o imóvel. Morava em uma pensão. Além de menos oneroso, era muito menos
solitário. A casa era povoada de recordações, ele não conseguia lidar e
conviver apenas com lembranças. Queria a vida, lutaria até seus últimos dias
pela educação das meninas.
E lutou. Mas o velho
coração, num ataque fulminante, interrompeu a batalha. As meninas ficaram
chocadas quando um parente distante apareceu no internato. Sem meias palavras,
a verdade foi contada. E a dor foi infinita. Choraram, silenciosamente.
Angelita era a mais velha, mas ainda não era adulta. E assim, por determinação
do tio, que mal conheciam, foram obrigadas a deixar o internato. Foram morar numa
vila do interior. Distante, muito distante da Capital. Viajaram quase dois dias
para chegar à nova morada. O tio era comerciante
de calçados, casado com uma senhora muito refinada, prima de Santos Dumont. Não
tinham filhos. A esposa, inconformada de morar naquele fim de mundo, vivia em
constante litígio com o tio. Não demorou muito, a vontade da mulher venceu a
demanda e se mudaram para Minas Gerais. Mas deixaram para trás as duas meninas.
Elas nunca souberam o
que foi feito do dinheiro do pai. Foram deixadas ali, sem eira nem beira.
Sozinhas. Através de ajuda de um e de outro, Angelita conseguiu uma sala para
dar aulas, espaço cedido pela prefeitura. Ganhava uns trocados. Carminda
bordava enxovais. O serviço era de tamanha perfeição que em pouco tempo
conseguiu encomendas até mesmo das grandes cidades. Um primor.
Ainda procurando
adaptação, receberam a notícia de que precisariam desocupar a edícula da casa
do tio, onde viviam. Os novos proprietários iriam utilizar aquela área. E então
foram acolhidas por uma prostituta. Passaram a viver em dois cômodos locados a
preço simbólico e as duas continuaram trabalhando.
Angelita conheceu Samir.
Apaixonaram-se. Depois de vários meses, ficaram noivos. Havia muitos planos
para um futuro próximo, preparavam o casamento. Então, apareceu na cidade um
engenheiro mecânico alemão, homem bonito, loiro e de misteriosos olhos azuis.
Chegara para programar o serviço de abastecimento de água na cidade, expandir a
área de distribuição. Assim que botou os olhos nele, Angelita perdeu a paz. Foi
um amor tão arrebatador que não havia como controlar. De ambos os lados.
O noivado com Samir
acabou. O forasteiro era casado, morava na Capital. Não escondeu, não mentiu. Angelita
sabia que havia outra família, mas não se importava. Não demorou nada,
engravidou. Para os moradores, foi um flagelo. Os alunos, aos poucos, foram se
afastando até que a prefeitura não mais permitiu o uso da sala. Passou, então,
a ajudar a irmã nos bordados.
Com a gravidez, o
engenheiro abandonou a outra família, o casamento acabou. Quando a criança
nasceu, Angelita estava muito debilitada. Quase não conseguia amamentar a
filha. Era visível o esmorecimento do corpo, a prostração que acometia a mãe.
Começaram as febres noturnas, o suor abundante, a inapetência, a tosse. A
tuberculose foi diagnosticada. As poucas pessoas da cidade que falavam com ela,
afastaram-se. Até mesmo o pai da criança deixou de visitá-la. E partiu...
Angelita era cuidada
pela irmã e pela prostituta. Revezavam-se nos cuidados com a mãe e com a filha.
A menina recebeu o nome de Lenita, e quando completou um ano, a mãe sucumbiu.
Não resistiu ao mal.
Carminda ficou com a
menina e cuidava dela como se fosse sua filha. Era tanto amor, tanto carinho,
tanto desvelo. Quando a tomava nos braços, sentia que o coração que batia ali
era também de Angelita.
Samir assistira a tudo,
distante. Como sofreu com a morte de Angelita! E não escondeu. Conversava
longas horas sobre isso com Carminda. Afeiçoou-se à menina, sentia-se próximo.
E a criança retribuía. A convivência, intensificada dia a dia, foi trazendo uma
sensação de família, de aconchego. Não seria possível dizer que entre eles
havia um sentimento arrebatador, mas havia amor, algum tipo de amor. E assim,
os dois passaram a viver juntos. Os três. Na casa, os móveis eram de caixotes.
Os vestidos da menina, mesmo feitos de sacos de farinha, eram lindamente
bordados. Lenita tinha beleza angelical. Amada, muito amada.
A mãe de Samir,
comerciante de roupas e calçados, ofereceu parceria em uma filial que seria
aberta numa cidade próxima. E foi um sucesso. Os dois, numa união serena, cheia
de carinho, de respeito, conceberam um casal de filhos. Eram três riquezas.
Lenita herdou o amor pelos livros, lembrava a mãe. Aliás, era a figura da mãe.
A mesma beleza, a mesma altivez, a mesma força. Meiga, agradecida. Casou-se e
foi imensamente feliz... Assim como os outros filhos.
Samir e Carminda
mudaram de ramo. Adquiriram a hospedaria e moravam ao lado, parede-meia. Ela
continuou com o trabalho das agulhas, uma artista. Lia vorazmente.
Era serena...
− Já é tarde, a noite
está fria, vamos entrar... – Sente a mão delicada de Samir pousar em seu rosto,
com a mesma suavidade da vida toda. Foi feliz, é feliz...
Amparada pelos braços do
parceiro, caminha em direção à porta. A noite está realmente fria. Sente-se
exausta. Sabe que é chegada a hora de descansar...
Regina Ruth Rincon Caires
sábado, 20 de março de 2021
METADES
Somos Thales e Tadeu. Digo “somos” porque viemos gêmeos univitelinos
e assim percorremos os primeiros anos com as mesmas feições, o mesmo andar,
as mesmas roupinhas, o mesmo terninho, as mesmas meias três quartos,
as mesmas gravatinhas borboleta. O mesmos topetes de Gumex.
Ainda crianças, levamos a mesma porrada. Perdemos nossa mãe,
nosso pai endoidou e deu um tiro na boca, e nos dividimos na vida.
Eu fui pra Barbacena para casa de uns tios, onde mais crescidinho entrei
para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, enquanto meu irmão ensaiava
no Rio, morando com primos distantes, os primeiros estudos de Medicina.
Nunca mais nos vimos. Pouco nos sabíamos.
Até que apareci para assistir à final Brasil e Uruguai da Copa de 50 no Maracanã.
Fiz questão de convidar meu irmão para ir comigo. E fomos. Depois de tantas vidas
dispersas, não nos reconhecíamos mais como gemelares crianças que fomos,
sem identificação alguma que houvesse perdurado. Ele ainda usava Gumex. Eu não.
Quando Ghiggia fez o segundo gol do Uruguai, colocando a alma brasileira na lona,
houve um silêncio de doer os ouvidos como se tivessem enfiado um cotonete de arame.
Soluços explodiram ao nosso redor. Acabou o jogo, o povo foi saindo devagarinho.
Lembrou o cortejo da mamãe.
Foi neste momento que meu irmão, impassível, tirou um limão do bolso, descascou
com os dentes e começou a chupar. Chupou, chupou, chupou, até chegarmos sem trocar
palavra na casa do primo distante onde ele morava, perto do Maracanã.
Um trauma. Mas não tão aflitivo quanto à curiosidade que começou a me perseguir
e nunca tive coragem de perguntar: por que chupar limão?
Eu virei piloto de avião, larguei a caserna e fui para os Estados Unidos
treinar em Constellations – voltei direto para a cabine de um deles da Panair.
Meu irmão formou-se em Médico Legista. Mesmo à distância, sabia por fontes
confiáveis que ao chegar em casa depois de uma jornada dissecando defuntos,
danava a chupar limão.
Enquanto eu flanava mundo afora, conferindo de fato o mapa mundi da parede
da escola, não tinha tempo para conviver com ele. Na verdade, não tinha
tempo para ele. Mas sabia de seu casamento, do casal de filhos e do casarão
na Tijuca, que comprou de tanto escarafunchar os mortos com extrema habilidade.
Virou diretor do IML. Mas nunca deixou de chupar limão.
Quando a filha deu desgosto, se enrabichando com um sujeito de cabelo crespo,
meu irmão passou a chupar limão no café da manhã. Quando as brigas com a mulher
atingiam os píncaros da insanidade, trancava-se no banheiro e chupava limão.
Quem me contava essas coisas era uma amante que tinha no Rio, uma psicóloga
bem mais nova que eu, a tal fonte confiável, por acaso do destino, vizinha
do casarão do meu irmão. E como vizinha, amiga da família dele, sem que nunca
revelasse a nossa clandestinidade. Nunca falou de mim para meu irmão, mas
sobre ele, dizia que vivia chupando limão.
Minha formação militar, objetiva, técnica, metódica e cartesiana não me deu
margens a pensamentos profundos. Mas minha amante defendia que meu irmão
compensava as agruras da vida chupando limão. A acidez cítrica extrema lhe
provocava um alívio, por encontrar entre a língua e o céu da boca algo mais
ácido do que os piores momentos que a vida oferecia. E assim ia vivendo.
Talvez fosse isso, não sei. Sou bom em aterrissagens, decolagens e não em
interpretações, subjetividades e diagnósticos de psicólogos.
Numa manhã cheguei de Paris e, como de costume, fui para o Hotel Novo Mundo
no Flamengo encontrar minha amante. Ela chegou muito atrasada, esbaforida e
me veio como uma notícia: “seu irmão acabou de morrer de infarto, debruçado
em cima de um cadáver no Instituto Médico Legal”. Horrível.
Imaginei um corpo sobre o outro.
No velório não consegui chorar. Olhei o rosto céreo do meu irmão, vi minha
cara com algodão no nariz. Mas nem a lembrança de nós meninos de gravatinha
e meia três quartos mexeu com minhas entranhas. Cumprindo protocolo, abracei
os filhos e consolei a viúva, agradecendo seu último esmero em pentear o cabelo
do marido morto com Gumex. Nem uma lágrima me veio. Nem nó na garganta.
Nem quando o caixão baixou sepultura.
Saí do cemitério do Catumbi sozinho, minha amante achou por bem não me acompanhar.
Peguei um taxi que me deixou numa feira. E comprei uma dúzia de limões.
sexta-feira, 19 de março de 2021
Ela
Ela, nem bem se sentou, pediu uma água com gás.
Absolutamente, não sou capaz de adivinhar as suas vontades. Cheguei a desistir
em tantas oportunidades… Quando me chamou para o bar do Silva, tentando prever
as consequências, tomei logo um protetor para o fígado, já que nos últimos dias
não venho me sentindo bem; enjoo com facilidade. Na mesma toada, confuso, pedi
uma água com gás. Então, ela me interrompeu e jogou a interjeição: “Ué, uma
água com gás? Tão previsível”. Tive de me rebolar para expressar que não era
uma mera repetição. “Parece que você percebeu que não posso beber. Estou ruim
do estômago”. “Ah, Fagner, lá vem você com coitadismo. É isso, quer me chantagear,
de cara?!”. Nada. Falava ingênuo, até de certo modo abobalhado. Estava, sim, surpreso
em encontrá-la, frente a frente, depois de tantos percalços. “Você devia ser
mais honesto consigo mesmo”. Enquanto eu elaborava o encontro, ela soltou, como
sempre, a provocação. “Não, por favor! Não queira levar a conversa para outro
lado. Se estou aqui, é para resolvermos nossa situação”, falei. “Pois, para
mim, está resolvido. Você que entende tudo errado. Gosto de você. Mas é aí que
mora o perigo; se não declarar milimetricamente a palavra certa, você me
interpreta mal e tudo desanda para o amor infantil. Carinho, entende? É isso”.
Ela havia me salvado, como em outros momentos, do enfado do horário de almoço,
quando deveria estar com o grupelho de gananciosos da firma. Por isso, pensei
que o fato de mudar, alterar o roteiro, e estar com ela, já valia muito, e não
persisti em questionamentos baldados. “Bom, é o seguinte: te chamei aqui para
dizer que vou voltar para a minha terra (Que terra? O local que nunca revelou).
São Paulo é uma cilada; um engano para mim. Já era!”. Não. Não era possível. “Como
assim? Você mora aqui há, sei lá, uns dez anos, tem emprego estável, casa e
tudo mais. Por que essa decisão precipitada, agora?”. A verdade é que, desde
que nos separamos, nutria um desejo incontido, velado, de reatar o relacionamento.
Brigamos por bobeira, coisa pouca; não era motivo para a partição definitiva. “Fagner,
vou ser bem sincera…” – virou o rosto; deixou-o pender sobre o tronco, olhando
para a mesa. “Saber que você está por perto é a dificuldade com a qual não sei
lidar. Você não se resolve; não se emenda; o trabalho é um fiasco; a sua vida é
um caos. E fico pensando: será que tenho parte nisso? Não posso ser atormentada
pela dúvida. Devemos seguir!”. No imediato instante, respondi que não. “Não!
Você não tem nada a ver com as minhas questões pessoais. Se estou aqui; se
estou inundado em dilemas, foi culpa minha. Não se sinta responsável por isso.
Pelo contrário, você me ajudou em muitos pontos a ser melhor; a enxergar a
desolação que me compromete. Eu que não fui capaz de superá-la. Se for embora,
que seja por outra razão, por favor!”. Ela pegou um bilhete amarrotado da calça
e me entregou; deixou uma nota de cinquenta na mesa e saiu. Ela tem uns ímpetos
que não sei distinguir para que lado devo ir. Com o volume de gente, focado na
minha descomunal timidez, não consegui interromper o curso. Ela se foi
deslizando, muito segura, por entre as pessoas, e se misturou até não ser mais abrangida
por minha visão míope. Gerson, o garçom que invariavelmente nos atende – claro,
só havia dois; e Gerson era responsável por aquela mesa –, perguntou se queria
algo, se não iria almoçar. Pedi um café e um pão na chapa, para ludibriar os
espaços vazios. Comecei a debulhar o conteúdo da carta. Nela, há um começo
peculiar, que me dobrou os sentidos: “Você é uma pessoa especial, saiba disso.
Mas eu não tenho forças para continuar no papel de mãe, de protetora, que, nos
aperreios, vem lhe socorrer. Estando aqui, mesmo que distante, ficaria
preocupada, arranjando meios para lhe salvar. É preciso cortar o cordão umbilical,
entende? Você já é grande o suficiente para dar conta disso tudo que fez. Eu,
onde estiver, rezarei por você; para que vença o que não pode ser. Procure
ajuda. Procure se tratar…”. Ela, felizmente, acionou o gatilho: preciso ajustar
as conexões, que me confinam no lugar da inépcia, da paralisia abstrusa. De uma
vez por todas, por ela, vou procurar ajuda… Talvez ela esteja blefando e não voltará
para a sua “terra”. Não tem para onde ir… É isso. Ela me ama! Ela vai encontrar
um novo homem, o Fagner de cabeça erguida, são e salvo. Serei para sempre dela.
Que seja, vou procurá-la nos confins da existência.
quarta-feira, 17 de março de 2021
Janela aberta - um conto de Fátima Brito
JANELA ABERTA
“Ele tinha o sol em suas entranhas.” (Pablo Picasso)
Um choro escapou pela janela do quarto. Eu era então muito jovem, ainda nem tinha dezoito. Era do bebê que encantava a vizinhança quando saíamos a passear pela rua. Era o meu bebê, sempre rechonchudo e macio desde o primeiro dia quando escorregou do meu ventre, aninhando-se em meus braços e eu pude sentir aqueles fiapos loiros acarinhando as ideias que ele um dia viria a ter.
Um choro escapou pela janela do quarto. E eu de novo o olhei e apanhei seu choro e o fiz riso e cantei-lhe a mesma música de ninar e sorri com ele imaginando o dia em que ouviria sua voz cantar. Desde o primeiro dia em que nos vimos, sempre o aninhei. E ele falava comigo. Falava mudo, sem dizer palavra, com a boca cheirando puro leite. Seus olhos brilhavam muito mais que todos meus sonhos juntos e diziam-me só beleza.
Braços estranhos aos meus nunca tinha experimentado. Ele dormia com o narizinho afundado em meus cabelos e eu ouvia sua respiração leve dizendo nana nana nana. Eu passei a dormir em paz.
Pela janela daquele quarto só eu aparecia, sempre acompanhada por ele, que foi se tornando um menininho alegre, magrinho como eu. Não tínhamos pai. Ambos os pais tinham morrido pra nós. Eu e ele formávamos aquela família e os dias iam correndo como corria meu menino pelos cômodos da casa grande em que me deixaram abandonada, achando que não resistiria. Resisti. Por ele. Pelas palavras que um dia ele me diria, algumas em sagrado segredo. Por nossos sonhos. Ele também sonhava por mim.
Me fiz mãe e irmã e pai e irmão e vó e vô e também me fiz primos e o fiz feliz, plantando o sol em suas entranhas e expelindo de minha vida a escuridão. Ele era minha lembrança e minha esperança e tudo foi fluindo até que.
Ele voltou e se instalou ali. Ele voltou e se instalou ali, desestruturando nosso território com seus cheiros, chacoalhando nosso ninho com seus passos de gigante desorientado.
Eu não queria e chorei e gritei pra vizinhança toda ouvir, mas todos se fizeram surdos, afundados na indiferença, preocupados com suas próprias e mesquinhas lutas. E o meu menino não dormia mais com o narizinho em meus cabelos e ele foi parando de correr alegre pela casa e quase não mais aparecia na janela, que agora permanecia fechada.
A casa foi mofando, parecia tão velha com aquelas teias se formando mais rápido que minha habilidade em exterminá-las. Um cheiro inconfundível foi tomando o ar e até aquela rachadura que eu nunca tinha visto apareceu, enfeiando a parede do berço que nunca tinha abrigado seu corpinho, sempre alojado ora em meus braços, ora em minha cama, ou correndo com o vento pela casa, espalhando a fina poeira. Eu temia que o sol em suas entranhas deixasse de brilhar. Então me fiz muda e, em uma das tantas noites de insônia, tramei meu plano.
Quando o vi nocauteado pela cocaína misturada com o conhaque que parecia inebriar o pequenino, fazendo-o dormir sem sonho em um colchãozinho ao lado da cama de casal, ousei abrir a janela. E a imagem do revólver invadiu-me como a luz do sol. Há muito não via nada mais claro em minha mente.
A arma repousava inútil, aninhada entre os livros da biblioteca. Ela era muito grande, tão grande que eu não conseguiria segurar. Mas poderíamos os dois carregá-la. Suas mãos macias, ainda que só acostumadas aos carinhos, bem poderiam me ajudar. Então, eu faria o resto. Miraria bem no centro. E apertaria com gosto. E o sangue escorrendo quente seria minha senha e me faria voltar a cantar canções de ninar e a nanar. E eu lhe diria: meu pequeno e corajoso guerreiro.
Fiscalizei o céu sem estrelas e olhei com ódio as janelas fechadas que cercavam nossa casa. Cuspi com gosto e minha saliva grossa deve ter atingido alguma flor.
Dormi e sonhei. No dia seguinte, saí bem cedo pra comprar as balas. Uma só bastaria, mas eu preferia me precaver. Ele merecia pelo menos quatro, uma pra cada ano de abandono.
O sol estava firme. E as janelas dos vizinhos já estavam todas escancaradas. O cheiro de manhã me alegrou e consegui sentir o cheiro de nossa casa sem mofo. Antes de voltar, compraria uma tinta bem alegre e contrataria os serviços de um pintor. Não queria o mofo nem a rachadura. Passo apressado do tamanho de minha agitação. Tropecei em alguns vizinhos e não lhes dei bom dia. Minha magreza ocupava todos os espaços da rua onde só havia olhos pra mim. Eu antegozava o prazer do sangue rolando até o corpo restar pálido e ser examinado pela polícia.
A dose de cocaína seria mais alta que a de costume, a de conhaque também. E eu, chorando, contaria “tentei evitar, tentei, gritei, pedi socorro, mas nenhum vizinho me ouviu!”. Eles me olhariam penalizados com minha dor. Cobiçariam minha magreza e juventude e a cor dos meus olhos. E eu os faria vermelhos de vergonha pela indiferença indesculpável com que haviam tratado meu desespero. “Ele não tinha mais como pagar, estava consumindo muito e os conhecidos não queriam mais esperar pra receber; eles não acreditavam que ele teria como acertar o que devia... Eu avisei, desde o começo eu avisei, avisei que o amava e que aquilo não era certo com a gente... Não era certo com nosso filho... Tão pequenininho, tadinho...” E choraria mais, choraria com verdade e, quase sem conseguir conter os soluços: “Ele não quis me ouvir...”
Então, eles olhariam entristecidos, mas conformados, meu menino dormindo no berço. Pela primeira e última vez, ele dormiria ali, alheio a tudo, sem sonhos, embalado por aquele comprimidinho que eu dissolveria em seu leite. Suas mãos limpas no dia seguinte voltariam a brincar com carrinhos, correndo pela casa com o sol entranhado nas entranhas. Eu carregaria a arma sozinha. Minha raiva era bastante para. Não sujaria suas mãos com pólvora. Suas mãos destinavam-se para o sol e isso eu já tinha visto nas cartas muito antes de ele nascer.
O sol, o mago, a força, o mundo. XIX, I, XI, XXI. Aquelas cartas lindas, postas sobre a mesa com toalha e velas brancas na tarde em que sonhei com ele antes mesmo de concebê-lo. O vento era fraco e suave, cantando uma certeza. Eu sabia que conceberia o que de mais lindo estava destinada a conceber. E foi como se o universo todo caminhasse em mim, cada átomo entrando devagar como se pedindo licença até que não havia nada mais fora de mim. Assim o concebi. Só eu.
Quase feliz apressei ainda mais o passo mais firme que meus pés já tinham visto. Munição. Tinta. Pintor. Sonífero. O mesmo caminho de volta, mas sem tropeçar em vizinhos.
No jardim, minha saliva grossa parecia borbulhar sobre uma margarida.
Manuseei a chave com cuidado. Não queria acordá-los. Antes prepararia um café e me mostraria diferente. “Eu tive um sonho em que alguém me dizia pra te perdoar. Acho que era Deus. Era Deus que me pedia pra te perdoar, que você precisa de nós. Que você vai melhorar. Pronto. Vou te perdoar. Vamos selar nosso reencontro com esse café. Eu, você e o menino.” E, ele, com aqueles olhos agressivos e ao mesmo tempo distantes como se eu fosse uma ameba tentando uma comunicação impossível com um ser superior. Mas eles não me incomodariam porque eu sabia que a vida para ele, a partir daquele momento, não passava de uma contagem regressiva. Não duraria mais que vinte horas. Para mim, longas vinte horas.
Café pelando na chaleira, frios e pães sobre a mesa, subi eufórica. Era verdade, eu nunca tinha concebido um plano assim tão bom.
Contive a alegria e abri devagar a porta do quarto.
Caí ajoelhada. Contive o grito, mas não a convulsão de meu corpo que se manchou com o sangue ainda quente que escorria.
Seu corpo perdia a cor, que escapava pelos buracos da testa e do peito. Quem chegara antes de mim pra me furtar o prazer de uma última vingança? Rápido, percebi o risco. O medo tomou-me como uma chicotada impiedosa fazendo tremer toda minha espinha, arrepiando todos meus pelos, tirando-me o chão para nunca mais repô-lo. Desesperada, desviei meus olhos e vi o colchãozinho vazio! Temia encarar a verdade. Então, a porta fechou-se! Uma rajada de vento entrava pela janela que eu tinha esquecido aberta. Olhei na direção contrária e certifiquei-me daquilo que já imaginava: o berço também estava vazio. Completamente vazio.
Em desespero, levantei-me. Meu corpo liberava descargas como se entrando em transe, mas eu segui até a janela. Apoiei-me no parapeito e gritei com uma força que não imaginava ter. E continuei gritando pra que todos – e também o sol o mago a força o mundo o doido - sentissem minha dor. Mas de nada adiantou. Eles não fizeram nada a não ser chamar a ambulância. Mesmo anestesiada, debati-me o quanto pude até sentir o poder da roupa estranha com que me vestiram. Sem qualquer alternativa, segui para uma clínica. Apenas um consolo: no jardim a margarida crescia monstruosa.
Não sei bem quanto tempo passei naquele lugar. Nem quero saber. Só sei que meus passos nunca mais foram firmes, o medo os faz cada dia mais inseguros. Minha voz nunca mais foi capaz de gritar, nem de entoar canções de ninar e eu tenho passado cada um dos anos de minha vida a perseguir o enigma daquele início de manhã, a tentar descobrir o itinerário do destino de meu menino magrinho e ensolarado. E, ainda hoje, ainda órfã, com os cabelos embranquecidos, imagino que sua cabeça tenha acarinhado ideias brilhantes, que um dia chegarão a mim por meio de sua voz de homem.
Quase todo dia vejo reflexos nos espelhos da casa e algumas luzes que surgem de repente. Cenas de sua vida chegam até mim e agradeço ao universo por esses presentes. Mas quero mais, quero o desenho todo, quero a cena completa, aspiro à história inteira. Recorro ao tarô e espero, cada vez menos, sua voz pra me ninar e reafirmar aquelas palavras mudas, vivas, ressoando no passado. Penso que estou morrendo.
Do livro "Segredos e Prazeres", Editora Patuá, 2018.
segunda-feira, 8 de março de 2021
A Bem da Moral
Era um prédio de seis andares, semelhante a muitos outros
da mesma rua, com numerosas janelas retangulares dispostas regularmente ao
longo da fachada de pedra cinzenta e lisa, bastante enegrecida pelo passar do
tempo e pela poluição ambiente. Os poucos elementos clássicos que o decoravam
davam-lhe um ar de elegância sóbria, embora um tanto ou quanto antiquada. A
porta principal, de dois batentes, era de madeira pesada e escura, tendo nas
almofadas pequenos florões em latão, um pouco danificados pelo tempo, e enormes
fechos, mais decorativos do que funcionais.
O átrio, pequeno mas discretamente elegante, tinha o chão
em mármore aos quadrados pretos e brancos, um pouco riscados e partidos, mas
sempre bem encerados, paredes cor de marfim e um belo lustre de metal amarelo,
bastante escurecido pelo passar dos anos. Ao fundo, frente à porta de entrada,
ficava um pequeno elevador quadrado, de um modelo bastante antiquado, não muito
rápido mas suficiente para as poucas necessidades do prédio e adequado ao
exíguo espaço ali existente. A escada, íngreme e bastante escura, fora relegada
para um canto. Já ninguém a utilizava, nem mesmo os moradores do primeiro
andar.
Desde há muito que ali habitavam apenas pessoas idosas e
casais não muito novos e sem filhos. Os apartamentos, dois por andar, tinham
numerosas divisões não muito espaçosas, com tetos demasiado altos e soalhos que
rangiam um tanto ou quanto com os passos das pessoas. Encontravam-se, de um
modo geral, em bom estado de conservação, embora as instalações precisassem
urgentemente de modernização. As mudanças eram raras e nunca havia festas
ruidosas ou barulho fora de horas. Não eram permitidos animais domésticos, com exceção
de pequenos pássaros canoros.
Em suma, um local agradável e sossegado, habitado por
pessoas decentes e educadas.
O pequeno elevador quadrado sentia-se bem feliz por ter
sido colocado num prédio tão respeitável e calmo. Não era muito rápido nem
silencioso e a sua capacidade de carga era bastante reduzida, mas esforçava-se
sempre por cumprir as suas obrigações com a máxima eficiência e prontidão.
Sentia-se bastante orgulhoso da sua bela alcatifa vermelha escura, sempre limpa
e bem cuidada, do grande espelho rebrilhante de limpeza, que ocupava a metade
superior da parede do fundo e da bem oleada grade, antiquada mas não muito
difícil de manejar. As paredes escuras e baças, o cinzeiro de latão bem polido
e uma iluminação difusa davam-lhe um último toque de elegância.
Com os seus longos anos de serviço e as raras mudanças
verificadas entre os moradores do prédio conhecia perfeitamente bem todos os
residentes e os visitantes mais frequentes. Poderia, mesmo, levá-los ao respetivo
andar sem ter de esperar pelo toque no botão correspondente, mas evitava
fazê-lo por uma questão de respeito: estava ali para ser comandado e não lhe
ficava bem sair do lugar que lhe competia! Nunca se desviava dessa regra, nem
mesmo quando havia enganos na ordem de toque nos botões e era bem grande a
tentação de evitar subidas e descidas desnecessárias. O respeito acima de tudo!
Era uma questão de orgulho profissional!
Sendo dotado de um grande espírito de curiosidade e como
passava várias horas por dia sem ter nada que fazer entretinha-se a tentar
reconstituir a vida dos seus passageiros a partir do pouco que conseguia ouvir
e observar enquanto os transportava. O seu pequeno tamanho era um auxiliar
precioso neste seu passatempo, pois com a proximidade forçada e o seu reduzido
número — não mais de quatro, se não fossem muito grandes — as pessoas quase que
se sentiam obrigadas a falar umas com as outras.
Pedaços de conversas, comentários dispersos, uma
expressão mais triste ou zangada, saídas e entradas mais frequentes do que o
habitual, sacos de compras mais cheios ou mais vazios, alterações no vestuário
ou no cabelo, tudo isso lhe servia como base para as suas lucubrações.
Esmiuçava até ao mais ínfimo pormenor tudo o que passava ao alcance dos seus
sentidos bem aguçados e sempre alerta, que nada deixavam escapar. Era pouco e
muito desconexo, mas com o acumular contínuo de informações e as muitas horas
vagas ao seu dispor, conseguia saber muito e deduzir ainda mais.
Era um ótimo passatempo, embora, infelizmente, pouco
houvesse a descobrir: eram todos pessoas respeitáveis e pacatas e as suas vidas
decorriam regularmente, sem grandes escândalos ou sobressaltos.
Mas o que mais o divertia era tentar adivinhar quem eram
e para onde se dirigiam os visitantes que apareciam pela primeira vez. É claro
que os empregados dos Correios, Luz, Gás e Água não lhe interessavam minimamente
— nem sequer se lhes podia chamar propriamente visitantes. Tinha, até, um certo
jeito para os detetar à primeira vista, mesmo que mudassem todos os meses. Mas
os outros!...
Mal abriam a porta e faziam deslizar a grade logo eram analisados
e avaliados pelo olhar perscrutador do pequeno elevador quadrado, que se
considerava um ótimo e experiente conhecedor de pessoas. O facto é que raras
vezes se enganava quanto ao destino provável dessas novas caras. Deixara, até,
de fazer apostas consigo mesmo a esse respeito, pois acertava sempre. Ou quase
sempre.
Infelizmente, e embora os visitantes desconhecidos nunca
tivessem sido muito frequentes, o seu número rareava cada vez mais à medida que
os anos passavam, privando, assim, o pobre elevador quadrado de uma das suas
poucas fontes de distração.
Foi por isso que a rapariga ruiva que surgiu pela
primeira vez numa quarta-feira à tarde o impressionou duplamente: pela novidade
— a primeira visitante nova que aparecia desde há vários meses — e pela
incongruência do seu aspeto. Muito nova, mas pintada de modo extravagante, com
um cabelo demasiado colorido e de corte verdadeiramente incrível, roupa ultramoderna
e modos bruscos, não se coadunava de modo algum com o ambiente discreto e
conservador do prédio. Por mais que se esforçasse não conseguia pensar num
destino provável para tão estranha criatura. Acabou mesmo por desistir, sem ter
emitido uma única hipótese, o que o deixou de bastante mau humor.
Ainda mais intrigado ficou quando a viu sair no quinto
andar, pois aí habitavam, apenas, uma senhora já idosa e um casal relativamente
jovem, mas que até então não recebera qualquer visita. Seria esta a primeira?
Ou teria havido engano no prédio? Por momentos ainda acalentou a esperança de
que assim fosse, mas a tarde passou-se sem que ela voltasse a sair. Viera,
pois, visitar alguém do quinto andar. Mas quem? Era esse o grande enigma!
Pôs-se, pois, a passar em revista tudo o que sabia dos moradores do quinto
andar.
A senhora de idade era uma das suas passageiras favoritas.
Viúva de um oficial do Exército, tinha um ar distinto e elegante, andando
sempre impecavelmente arranjada, nem que fosse para ir à mercearia buscar meio
litro de leite. Embora não falasse muito, tinha sempre uma frase bem educada
para com os seus companheiros de viagem. As suas poucas visitas eram sempre
senhoras igualmente idosas e distintas, que raras vezes apareciam e pouco se
demoravam. Pelo que pudera deduzir, nunca tivera filhos, sobrinhos ou
afilhados, ou, se os tinha, nunca a visitavam.
O casal que com ela partilhava o quinto andar era dos
mais jovens e recentes moradores do prédio. Embora discretos e educados, só ao
fim de bastante tempo tinham sido aceites pelo pequeno elevador quadrado, pois
fazia-lhe confusão ver a mulher sair muito cedo todos os dias, para ir para o
emprego, ao passo que o marido ficava quase sempre em casa. Pelo que conseguira
apurar, este era contabilista e trabalhava para várias firmas pequenas, não
tendo, pois, necessidade de se deslocar muitas vezes. Era uma explicação aceitável,
mas mesmo assim causava-lhe um certo mal-estar ver um homem em casa durante o
dia, a menos que fosse reformado ou estivesse doente.
Para dizer a verdade, nem mesmo aceitava totalmente a
ideia de uma mulher ter de trabalhar. Pelo menos a partir de um certo nível
económico, que ele colocava bem baixo. Com os seus inúmeros anos — fora um dos
primeiros modelos e bem orgulhoso se sentia disso! — havia certas modificações
nos costumes e estilo de vida das pessoas que lhe faziam certa confusão. Mas
tinha de reconhecer que não tinha qualquer razão de queixa deste casal, que
sempre se comportara na sua presença com uma correção ao nível do local que
habitavam.
Decididamente, a visitante desconhecida não se enquadrava
com o que sabia dos habitantes do quinto andar — ou com os de qualquer dos
outros andares do prédio! Já era quase noite quando desceu, sozinha tal como
havia subido. O mistério do propósito da sua visita mantinha-se, pois, intacto!
O pequeno elevador quadrado abominava qualquer
acontecimento inexplicado. Gostava de ordem e método em tudo, mesmo na vida das
pessoas. Lá bem no íntimo equiparava inexplicado ou inesperado a anarquia, que
era algo que o aterrorizava. Em condições normais teria dedicado várias horas
ao problema de tão estranha visitante, remoendo os factos conhecidos e deles
tentando extrair conclusões aceitáveis. Mas, como os dias que se seguiram foram
de grande excitação — a irmã da senhora do sexto andar decidira divorciar-se! —
não teve muito tempo para pensar no assunto. No meio de tanta agitação até
quase esqueceu a insólita quebra de rotina.
Ficou, por isso, desagradavelmente surpreendido quando na
quarta-feira seguinte a viu aparecer novamente e à mesma hora. Por incrível que
pareça, o seu aspeto era ainda mais extravagante do que da vez anterior. Mais
uma vez, e sem qualquer hesitação, tocou no botão do quinto andar. Ao chegarem,
ainda tentou ver para onde se dirigia. Mas, embora fosse bastante lenta, a
porta fechou-se antes dela ter dado dois passos. Demorou-se toda a tarde,
descendo, então, sozinha.
E o mesmo voltou a acontecer nas semanas seguintes. Todas
as quartas-feiras por volta das três da tarde, sem exceção, lá aparecia aquela
criatura a caminho do quinto andar. Os seus modos eram sempre bruscos, batendo
com a porta e maltratando a pobre grade, que, com a sua provecta idade,
precisava de um certo cuidado no seu manuseamento. Os pobres botões eram
pressionados com força excessiva, sem qualquer consideração pelo sua delicada
constituição. E o pior é que vinha sempre a fumar, sujando a alcatifa e o seu
belo cinzeiro bem polido — e que já não era utilizado há anos — e deixando
atrás de si uma fumarada que lhe perturbava a visão e era bem desagradável.
O pequeno elevador quadrado detestava-a cada vez mais.
Que criatura tão detestável! Que hábitos desagradáveis! Pensar que na sua
velhice era obrigado a aturar semelhante comportamento, ele, que sempre se dera
com a melhor sociedade e só convivera com pessoas de uma educação
irrepreensível! Era demais!
Para tornar o caso pior, nunca conseguia ver para onde se
dirigia. Parecia, até, que fazia de propósito, parando à saída do piso e
esperando, sempre a fumar, que a porta se fechasse. Era verdadeiramente
agravante!
Decidiu, por isso, fazer uma investigação em forma.
Começou, por isso, a vigiar ainda mais atentamente do que de costume as
conversas dos seus passageiros, o que só aumentou a sua frustração. Falavam de
tudo, menos da rapariga ruiva, o que não era de estranhar pois ela subia e
descia sempre sozinha. Possivelmente, e com exceção do visitado, os moradores
nem sabiam da sua existência.
Mas não foi tempo perdido, pois a investigação sempre deu
alguns frutos. Descobriu, por exemplo, que durante a tarde de quarta-feira
tanto a senhora idosa como o marido do jovem casal nunca saíam de casa.
Reparou, também, que a mulher desse casal parecia andar muito triste e
preocupada com alguma coisa. Deixara, até, de sorrir ao cumprimentar os outros
passageiros, o que era verdadeiramente uma pena pois tinha um sorriso bem
bonito.
O pior era que os pontos principais continuavam por
solucionar: quem era a insólita, e detestada, visitante, quem vinha visitar e,
sobretudo com que fins. Era exasperante! Andava de tal modo descoroçoado e
preocupado que, pela primeira vez na sua já bem longa carreira, começou a
funcionar mal, parando nos andares errados ou não respondendo quando o
chamavam.
Isso só fez crescer o seu ódio pela rapariga! Se não
tivesse aparecido nada disto estaria a acontecer! Pensar que só por causa dela
andava a manchar uma bela e impecável folha de serviços! Ao longo dos seus já
bem numerosos anos de serviço nunca tivera uma falha, uma avaria, podendo
gabar-se de estar sempre pronto a qualquer hora do dia e da noite. E agora a
sua reputação estava a sofrer golpes irreparáveis!
Uma quarta-feira à tarde, porém, teve um golpe de sorte.
Foi chamado ao quinto andar durante a visita da rapariga ruiva. Apressou-se a
subir e foi com grande ansiedade e um coração trepidante que aguardou a
abertura da porta. Quem o teria chamado? Seria a visita mais curta do que o
habitual? Ou iria desvendar, finalmente, parte do mistério?
A porta abriu-se e o pequeno elevador quadrado quase deu
um salto de excitação. Era a senhora de idade, com um saco de compras na mão.
Ainda estava ausente quando Ela saiu.
Não havia dúvidas sobre a pessoa visitada! Só podia mesmo
ser o tal marido, sempre em casa com a desculpa da sua profissão! Bela
profissão! Bem dizia ele que não era natural aquele estado de coisas, a mulher
fora e o marido no lar! Eis no que davam as modernices!
O pequeno elevador quadrado sentiu-se sufocar de
indignação! Acontecer uma coisa destas no seu belo prédio, um verdadeiro modelo
de decoro e honradez! Mas que desaforo! Nunca tal se vira! As suas suspeitas
sobre a Intrusa eram, pois, bem fundadas. Aliás, sempre desconfiara dela, e
desde o primeiro instante! Estava-se mesmo a ver que com um aspeto daqueles não
podia ser grande coisa! E os seus modos? Como podia haver quem gostasse
daquilo! Sempre era preciso ter muito mau gosto.
Coitada da pobre senhora do quinto! Não admirava que
andasse tão triste... sempre devia suspeitar de alguma coisa. Apesar do que se
costuma dizer, era impossível que assim não fosse. Até porque parecia ser uma
pessoa sensível e inteligente.
Ficou de tal maneira emocionado com tão grave situação
que nos dias seguintes todo ele vibrava e estremecia de nervosismo,
enganando-se e falhando frequentemente. Era preciso fazer qualquer coisa, pôr
cobro a um tão vergonhoso comportamento. Impunham-se medidas, mas medidas
drásticas! E o mais rapidamente possível. Não podia de modo algum permitir a
continuação de tanta imoralidade no seu prédio.
Mas que fazer? Como correr com a rapariga ruiva, acabando
com as suas visitas ao quinto andar? E, caso o conseguisse, como garantir que
não passava a ser ele a ir visitá-la? Ainda se pudesse falar, acusá-la com voz
tonitruante e implacável frente aos outros inquilinos... Infelizmente, isso era
impossível, embora fosse mesmo o que ela estava a pedir. Não! O que fizesse
teria de ser feito por si só, sem a ajuda de ninguém. Mas o quê? O seu
nervosismo — traduzido, infelizmente, em desagradáveis, fortes e ruidosas
vibrações — aumentou ainda mais, sem que vislumbrasse qualquer solução.
Estava completamente desesperado quando teve, finalmente,
uma ideia. Era uma boa solução, embora lhe fosse custar bastante pô-la em
prática. Mas que importava! O que era preciso era acabar com aquela situação,
degradante para o seu impecável prédio e desgastante para ele.
Pacientemente, aguardou pela quarta-feira seguinte,
ajustando mentalmente os últimos pormenores e endurecendo a sua resolução. A
visão do rosto acabrunhado da pobre mulher do quinto andar e os modos ainda
mais bruscos do que habitualmente da Intrusa só serviram para o tornar ainda
mais decidido.
As horas seguintes foram de grande nervosismo e
expectativa. Ao fim da tarde, porém, quando foi chamado ao quinto andar à hora
habitual do término da visita, sentiu descer sobre si uma calma aceitação do
que se iria passar. Até deixou de vibrar!
Ela entrou, puxando a grade com a violência habitual. O
seu aspeto era mais detestável do que nunca e tinha um ar de arrogância muito
desagradável. Por momentos, ainda hesitou — era um grande passo a dar. Mas
acabou por decidir sacrificar-se a bem da moral. Fechando os olhos, cheio de
medo pelos estragos que certamente viria a sofrer, deixou-se cair até à cave!
O choque, fortíssimo, paralisou-o durante alguns dias,
embora não tivesse ficado grandemente danificado. Mas a odiada rapariga ruiva
ficou hospitalizada durante meses, com várias fraturas.
Como não podia deixar de ser, o acidente foi muito
comentado no prédio. Descobriu-se, então, que a visitante recebia aulas de
pintura dadas pela senhora idosa do quinto andar, que tentava assim,
discretamente, complementar a pensão deixada pelo marido e que com o andar dos
tempos se tornara insuficiente. Como a aluna era neta de uma das suas amigas,
sentia-se à vontade para, se necessário, sair, deixando-a só a concluir o
trabalho dessa sessão.
Todos lamentavam o azar da pobre vítima do acidente — e o
da senhora idosa, que perdia, assim, a sua única aluna — exceto o pequeno
elevador quadrado. Fizera apenas o que lhe competia para zelar pelo bom nome do
prédio e dos seus moradores, sacrificando até a sua integridade física. Não
tinha culpa de os factos serem diferentes do que a princípio pensara. Ao fim e
ao cabo, um engano toda a gente tem. E, atendendo aos elementos ao seu dispor,
fora, até, um engano bem natural!
O jovem casal do quinto andar mudou-se pouco depois.
Veio-se a descobrir que ela sabia já há vários meses que ia ficar desempregada.
Não conseguira arranjar nova colocação e os trabalhos que ele arranjava não
eram suficientes para lhes permitirem continuar a pagar um apartamento. Foram,
por isso, viver com a mãe dela. Como não tinham amigos no prédio e pouco
falavam com os restantes moradores, em breve foram esquecidos.
O pequeno elevador quadrado sente-se como novo depois do arranjo profundo a que foi submetido. Até parece que rejuvenesceu vários anos, subindo e descendo infatigavelmente os andares do seu bem-amado prédio com um zelo e uma eficiência inigualáveis.
E tem agora um novo mistério com que se preocupar. É que a senhora do terceiro andar começou a ir com frequência ao sexto andar, e sempre na ausência do marido. E como lá só vivem duas irmãs muito idosas e um viúvo bastante atraente e que está sempre em casa...
Luísa
Lopes
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