"Qualquer coisa se perdeu, quando o Paraíso perdido se ganhou."
Fernando Pessoa.
Fernando Pessoa.
Ela faz questão de não esconder do marido. Puxa, incisiva, com os dentes incisivos, várias lasquinhas do esmalte vermelho. Veio da manicure ontem, mas a tinta da mão esquerda já beira a meia-lua na raiz das unhas.
— Não é possível, Rosana.
Você continua desse jeito por conta de uma coisa tão pequena.
— Pequena? — Ela bate
o cantinho do dedo na mesa. — Você acha pouco o que fez comigo?
— Você sempre foi
generosa. Vive se gabando de altruísmo.
— Do meu desprendimento
cuido eu.
— Já vi você jogando
seus trecos num saco plástico e entregando a bolsa de couro de vespa praquela
mendiga. Já vi você doando o vestido que te dei no último aniversário pra
diarista da vizinha. Já vi você fazendo campanha pra pagar o tratamento do Zelito.
— E não me arrependo. Dei, tá dado. Ajudei com gosto.
— Que ótimo.
A gata Bovary sobe no colo de Rosana. Bate a patinha no braço
da dona e lambe suas unhas lascadas.
— Cada um tem seu
jeito, Jéferson. Você precisa respeitar o meu, senão este casamento azeda.
— Então agora é crime doar
o resto de um sanduíche para um menino faminto?
— Condenado por justa
causa. Você me traiu.
— Gente, não estou
te reconhecendo. Rosana, o que aconteceu?
Bovary mia forte, encarando
Jéferson.
— Não sabe até hoje
que eu guardo o pedaço mais cheio de maionese, a porção de hambúrguer mais
suculenta e o gole mais gelado de coca pro final, pro meu grand finale?
Você não me perguntou nada.
— Você tinha ido ao
banheiro, criatura. Já tinha deixado o resto no prato.
Jéferson puxa a nota fiscal de dentro
do bolso e amassa o papelzinho que recebera na lanchonete.
— Por que não me esperou?
Eu já estava voltando. Posso dar esse pedaço pro menino? Perguntasse. Eu dizia
não, e tudo bem. Enquanto eu me olhava no espelho, esfregando as mãos, até
salivei, pensando no pedaço que eu tinha deixado sobre a mesa.
— O menino ficou tão
feliz. Desembrulhou e saiu comendo, satisfeito. Você precisava ver. E você
tinha pedido um sanduichão enorme.
— Eu podia comprar
um bem grande pra ele, um mc donalds, um bk, um refil pro menino encher com o
tanto de coca quisesse. Eu podia cozinhar hambúrguer pra família dele toda
comer a semana inteira, podia ensinar pra ele que hambúrguer é escrito com h,
tem acento agudo no u, uma paroxítona aportuguesada que termina em r; mas
aquela carninha, aquele pãozinho redondinho, aquele cheddar, aquela lasquinha
de alface que sobrou, aquele meio do pão, bem redondo, era meu. MEU. Entende? Aliás,
como meus são os desejos, como minha é a liberdade de comer quando e quanto eu
quiser, como meu é o corpo que não quer filhos e não quer netos e não quer
cachorros e não quer viagem pra Bahia e não quer fazer exercício e não quer
plástica e não quer se deitar com você (nem com a promessa de um galeto com
farofa de ovo no alpinus, filé acebolado no faisão dourado, nem com o convite
pra um sorvete de tapioca no saborella). Entenda. A minha caridade eu faço como
eu bem entender. Você tá parecendo a minha mãe, Deus a tenha, que fazia
promessa pra eu pagar, que combinava com a santa sem eu saber. Você dá minhas
coisas pros outros sem combinar comigo. Tá vendo o erro?
E ela começa a puxar também as lascas
de base incolor das unhas do pé.
— Pare de se meter
no meu sanduíche. Pare de ficar me obrigando a parecer melhor, mais caridosa
que eu já sou. O pedaço de sanduba era meu. Traidor. Corrupto. Você queria
lucrar em cima dele? Esse tipo de indulgência não resolve.
— Desculpa, Rosana. Você
enxerga tanta coisa. Vamos lá na lanchonete hoje de novo? Deixo o meu último
pedaço pra você. Prometo.
— Não, Jéferson. Hoje
você não me compra nem com uma caixinha inteira de geleia de mocotó colombo. Não
quero remendo. Só queria o direito de desfrutar da última mordida no meu
sanduíche. Hoje não. Aquele dia, aquele dia. Mas isso não volta, né, Bovary?
A gatinha balança a cabeça.
— Corta, corta — diz o
diretor. Só não mandei parar antes porque a interpretação dessa gata tá demais.
Mas precisamos repetir. Nossa. Tem lasca de esmalte no cenário todo. Gente,
eu preciso de uma cena mais real, e sem sair tanto do roteiro. Que mania é essa
de abusar do improviso? Por favor, Daniela. Detalhes significativos, meus caros.
Quero vida, sensação, entusiasmo. Rasguem as aulas de filosofia, o tom de confessionário. Esqueçam as terapias de casal e me venham apenas com o frescor do dia a dia. Sem
exagero. Se querem mesmo entrar no próximo Tchékhov que vou dirigir, precisam
melhorar muito. E seu papel tá garantido, madame gatínea. Miau.
Maria Amélia Elói
Luís e Carlos costumam encontrar-se no regresso a Odivelas e, ao longo do tempo, criaram uma competição intelectual, para entreter a viagem de metro: ver qual consegue apresentar a notícia mais fantástica. O que também lhes permite ocupar as horas mortas no trabalho com pesquisas e cálculos. Luís dá apoio às fotocopiadoras da biblioteca da Faculdade de Letras e passou a apanhar o amigo Carlos que trabalha na casa de fotocópias da Faculdade de Ciências, no Campo Grande, logo ali.
— Catano! 100? Isso é escandaloso! — concedeu Luís.
— Se é! Um hospital médio, como o CUF Tejo, custa 180 milhões. Consegues imaginar o volume de dinheiro que representam 100 como ele?
— Deve dar para encher de notas até ao teto as salas de supervisão do Banco de Portugal — ironizou Luís.
— Eh, eh, acho que mais! Há bocado pus-me a fazer umas contas. Achei que imaginar uma passadeira de notas talvez fornecesse uma imagem elucidativa. Então, pensei num percurso de dezoito mil passinhos de meio metro — tantos quantos os milhões —, o que dá nove quilómetros. Assim, tomando como meta o Terreiro do Paço, os nove quilómetros começam mais ou menos no Lumiar. Agora, imagina, caminharmos calmamente do Lumiar até ao Terreiro do Paço, a um milhão de euros por passada. Um passeio de magnatas desaparafusados! É essa a quantia que o Estado tirou do bolso dos contribuintes para não deixar falir empresas incompetentes. Bancos! Não produzem, fazem negócios gananciosos com o dinheiro que nós lá pomos; e mesmo assim conseguem perdê-lo.
— Caramba! Isso é inacreditável! Fomos mesmo endrominados!
— Agora, escuta — sorriu-se Carlos, a consultar o telemóvel e a antecipar o efeito do aumento de nitidez da imagem que aí vinha. — Já tens a distância; mas... a espessura da passadeira? Imaginei uma base quadrada, com a amplitude de cada passo — meio metro. E forrada com notas de 500 euros. Sabendo as medidas da nota, cheguei à conclusão que se consegue ladrilhar esse quadrado com 18 notas de 500 euros. Como um milhão são 2000 notas de 500, são precisas 111 camadas para perfazer o milhão de euros… Eis uma imagem que já dá uma ideia da enormidade do escândalo: uma caminhada apoteótica sobre uma fofa passadeira de 111 camadas de notas de 500 euros desde o Lumiar ao Terreiro do Paço...
— Cuidado! — exclamou Luís.
Tão absorto ia Carlos, que quase tropeçava numa trotineta elétrica abandonada em frente ao Museu da Cidade. Um pano na fachada indicava que o piso térreo se encontrava encerrado para obras de remodelação.
— Se há dez anos me dissessem que andaria agora a tropeçar em trotinetas, dizia ao tresloucado para tomar os comprimidos…
— Bem, estou abismado — voltava Luís à conversa. Um milhão por passada é uma imagem incrível.
— Mas uma camada de 111 camadas de notas pareceu-me ainda pouco visual. Pensei antes numa única camada. Cheguei então a isto, escuta!: as 111 camadas, lado a lado, são equivalentes à largura de uma autoestrada de 15 faixas de rodagem de 3 metros e meio cada. Desde o Lumiar até ao Terreiro do Paço. Totalmente asfaltada de notas de 500 euros. Já imaginaste 15 faixas de carros em hora de ponta a esfarrapar notas de 500?
Entretanto tinham subido as escadas da estação e posicionavam-se no cais. Havia alguns olhares furtivos e gente a fingir que não estava a ouvir. Luís, percebendo o tamanho da audiência, aumentou ligeiramente o tom de voz:
— Uau! Não dá para acreditar! E o vento a levantar farrapos de notas e a levá-los pelo ar até caírem lá longe e apodrecerem durante uma dúzia de anos... — pegava Luís na sugestão. — Apresentado assim, parece ainda mais alucinante.
— Como foi possível, não é?
— Incrível! Fizeste o trabalho de casa... Agora escuta a minha, que apanhei no Expresso e confirmei na revista científica de origem. Uma equipa de investigadores, que tem estudado o aumento de temperatura dos oceanos, fez cálculos e chegou à conclusão que a energia fornecida aos oceanos pelas atividades humanas, nos últimos 25 anos, é tanta como se tivéssemos feito explodir 3600 milhões de bombas atómicas, iguais à de Hiroxima.
— Milhões? — era a vez de Carlos se admirar.
— Milhões! — reafirmava Luís. — Três mil e seiscentos milhões.
— Fiu! — assobiou Carlos.
Entretanto chegou o comboio, bastante cheio. Era por meados de janeiro; as pessoas ainda nem sonhavam com as terríveis alterações de vida que um vírus lhes traria, em breve. Arrumaram-se como puderam, envolvidos pela multidão cansada, mas agarrada a telemóveis.
— Parece que é o equivalente a bombardear os oceanos com cinco bombas semelhantes à de Hiroxima... por segundo... todos os segundos... 365 dias por ano. Durante 25 anos. Luís martelava os dados com pequenas pausas, para aumentar o efeito.
— Heich! Isso é horrível! Como é possível? Bate a minha aos pontos.
— Só para Portugal continental, dá mais de 250 bombas atómicas por dia, desde 1995. Fiz as contas.
— És sempre o mesmo, Luís! — ouviu-se atrás deles. — Só tu!
— Olha o Eugénio! Que é feito?
— Há quanto tempo! — saudou Carlos, que também o conhecia do secundário. — Por onde tens andado?
Ajeitaram-se, de modo a ficarem mais próximos.
— Eh, pá, em novembro estive na Flat Con, em São Paulo. Aquilo foi fantástico! — desvanecia-se o recém-aparecido.
— Flat Com? O que é isso? Imobiliário?
— Convenção Terraplanista! Não ouviram falar? Dah! Estive lá de pleno direito. Sou correspondente em Portugal da Federação Mundial da Terra Plana…
Carlos e Luís entreolharam-se. Em volta era possível detetar alguns sorrisos complacentes e uns poucos esgares de desaprovação.
— Ok! Já li sobre essa moda — concedeu Carlos. — A Terra é plana, está coberta por uma espécie de cúpula e é limitada por um rebordo de montanhas geladas que impedem que se caia no vazio. Não acreditam nas viagens à Lua, nem em nenhuma das provas tradicionais da esfericidade do nosso planeta. E esse pessoal juntou-se para quê?
— Ora, para reforçarmos as nossas convicções e falarmos do futuro. Eu próprio apresentei um projeto — empolgava-se Eugénio, ao perceber o interesse dos amigos. — Já viram esses cartazes todos que estão espalhados por aí, a dizer que não há planeta B? Foram eles que me deram a ideia principal. Não há planeta B? Pois parece-me evidente que há. E a minha ideia pode ser a solução dos nossos problemas e a salvação da Humanidade.
Eugénio calou-se a fazer render a expectativa e a saborear a curiosidade dos amigos, mas estes mantiveram uma atenção sóbria. Em volta apurava-se o ouvido, tentando contrariar o ruído do metro, naquele ponto do trajeto.
— A Terra é uma espécie de disco plano e grosso, como uma tarte, não é? Ora, o outro lado do disco o que é senão uma outra Terra plana? O tal planeta B! Claro como água. Só falta descobrir como vamos conseguir passar para lá. Ultrapassando a borda e virando para baixo? Ou furando o chão? De uma maneira ou de outra, quando o conseguirmos temos o problema resolvido.
Carlos e Luís estavam constrangidos. Em volta manifestavam-se sorrisos abertamente.
— Um furo parece-me o mais prometedor. Mesmo que a gente não consiga colonizar a outra face… por exemplo, se lá não existir este efeito a que chamam gravidade… nesse caso, o furo pode ser a solução para a subida dos oceanos, se ela for real. Foi a ideia que eu lancei lá na Convenção. Abre-se o furo e esvazia-se o excesso! Lógico, não?
A dois corpos de distância, alguém tentava conter uma gargalhada. Eugénio acusou o toque.
— Sempre houve grandes pensadores escarnecidos pelos seus contemporâneos, mas depois tiveram que lhes dar razão — declarou, solene. — Precisamos de um novo paradigma que denuncie a grande fraude com que nos têm enganado e prove a verdade da Terra plana, na sua simplicidade e beleza.
A chegada ao destino não deixou Eugénio continuar. Saiu na Ameixoeira, permitindo a vários passageiros alargarem os sorrisos, mas contristou outros que esperavam mais galhofa. Luís estava incomodado e levantou um pouco a voz, para afastar de si os mais que prováveis preconceitos circundantes.
— Isto não era possível antes do Youtube. Pelo menos com esta dimensão. Uma convenção… Os algoritmos, ao apresentarem inúmeros vídeos relacionados com a teoria maluca a que começámos a assistir, fornecem-nos mais e mais a ilusão de que toda a gente está de acordo com ela. É com a Terra plana e é com as milhentas teorias de pseudociência que são visionadas e difundidas sem reflexão, sem verificação, sem racionalidade.
— Olha, sabes que estive a ler exatamente sobre isso? — corroborou Carlos. — Todos os terraplanistas se tornam terraplanistas a ver outros terraplanistas no YouTube. É a força das imagens, com a sua potência emocional a influenciar o fenómeno cognitivo; e são outros mecanismos psicológicos, sociais e culturais. Muitas vezes, são pessoas com formação, mas a desconfiança em relação ao conhecimento especializado e uma maneira errada de entender o ceticismo leva-as a pôr em causa esteios bem firmados do conhecimento científico. E acabam por se convencer que eles é que pensam com lógica e raciocínio científico.
No Senhor Roubado saiu muita gente. Luís pegou na conversa, mas já em tom de voz normal.
— E não vale a pena argumentar com um terraplanista ou outro crédulo desse tipo. Nada os demove do seu erro. Agarram-se à sua ilusão com unhas e dentes; tudo o resto são manipulações da Grande Conspiração Global. Não há paciência!
— Eu fico possesso com teorias maradas e notícias falsas. Estou farto de apanhar com imbecilidades, desonestidades, fanatismos no Facebook. Às vezes, só me apetece desamigar toda aquela gente que prefere viver com os neurónios desligados. As pessoas não têm a mínima sensibilidade para detetar a treta, o disparate, a falsidade. Acreditam em tudo!
— Não é em tudo. Parece que têm uma preferência por histórias estapafúrdias. Se a história parece inverosímil, é certo e sabido que vai ser partilhada por muita gente. Mas não perdem uns segundos a tentar perceber se é falsa. Eu acho mesmo que, para eles, é irrelevante se é verdadeira ou falsa. Interessa é a espetacularidade. Como se a sua vida fosse tão desinteressante que precisasse de grandes ficções para lhe dar um pouco de animação. De vida real estão eles fartos. Só não os desamigo porque gosto de pensar que, enquanto forem meus “amigos”, posso influenciá-los. Mas acho que não consigo.
Saíram em Odivelas e encaminharam-se para o bairro Codivel, pelo túnel decorado pelo graffiter Styler. As pinturas murais de grande intensidade figurativa, do tema de Alice no País das Maravilhas, ilustravam, oportuna e ironicamente, a nossa grande apetência por mundos fantásticos, maravilhosos e mágicos.
Joaquim Bispo
*
Imagem: Styler, Alice no País das Maravilhas (pormenor do Gato de Cheshire), 2016–2017.
Odivelas.
* * *
No início da década de 1970, para tirar
o sossego dos pais dos garotos, a moda era cabelo longo.
Aloísio, embodocado na timidez dos seus
treze anos, filho mirrado de um negro e de uma cabocla, órfão de pai desde que
nascera, vivia com a mãe e mais um irmão.
Meio carapinha, ele dormia todas as
noites com a cabeça enfiada numa velha meia para tentar driblar a rebeldia dos
longos cabelos. Quando acabava de lavá-los, com a velha tesoura aparava as pontas
daqui e dali, ritual que fazia escondido, longe dos olhos da mãe e do irmão
mais velho. Os dois não aprovavam aquela profusa cabeleira que deixava Aloísio
com o semblante ainda mais franzino, disforme. Era uma cabeça desproporcionalmente
volumosa sustentada por um corpo minguado. Imagem triste.
Certo dia, Paulo, seu irmão,
ofereceu-lhe, de presente de aniversário, um
corte de cabelo na barbearia do Seu Alípio. Aloísio ficou todo cheio! Cortar o
cabelo numa barbearia era artigo de luxo. Desde que se dera por gente e até
certo tempo atrás, seu cabelo sempre fora cortado pela mãe. Sairia da barbearia
todo faceiro, cheirando a álcool, a talco ou à água Velva!
No dia combinado, Aloísio recebeu uma
cédula de dinheiro do irmão, e foi todo aprumado em direção à porta. Antes de
sair e temendo não saber o que dizer quando chegasse sozinho à barbearia,
perguntou:
-
Paulo, o que eu digo ao Seu Alípio?!
-Não fique avexado, oxe! É só chegar lá
e falar que quer fazer o corte “americano”! Vá logo, ande! –
respondeu Paulo.
Aloísio passou pelo portão, todo
garboso, metido num traje domingueiro, calças até o joelho, impecavelmente
passadas a ferro pela mãe. Caminhava quase aos trotes, tamanha a pressa, e com
as mãos nos bolsos, remexia alegremente a cédula de dinheiro, e o seu velho canivete,
inseparável companheiro. Logo estava diante da barbearia.
Cumprimentou Seu Alípio e, numa voz
quase sumida, disse a ele que queria cortar o cabelo, corte “americano”,
conforme a orientação do irmão.
Seu Alípio o colocou na velha poltrona,
mas Aloísio era tão miúdo, tão apoucado no tamanho, que não conseguia se olhar
no espelho colocado na parede de frente. A toalha foi colocada sobre os ombros,
e Seu Alípio começou o preparo da tesoura. Ao mesmo tempo em que começou a assobiar, iniciou também a dança
das tesouradas. Era uma rapidez de movimentos que Aloísio ficou imobilizado. O
medo de se mexer virou pânico quando ele pressentiu que, caso se movimentasse, poderia
levar uma tesourada nas pontas das orelhas. Orelhas, aliás, bem avantajadas,
muito mais que o desejado...
Aloísio, enquanto ouvia o assobio
ininterrupto do Seu Alípio soar cada vez mais estridente, via os tufos de
cabelo caindo da tesoura, passando pelo seu rosto, pelos seus ombros cobertos
pela toalha, pelos braços, e se esparramando pelo chão. Estava em choque! De
onde saía tanto cabelo? O que Seu Alípio estava aprontando na sua cabeça?!
Espavorido, nem conseguia se mover. E o zunido
da tesoura não cessava...
Atordoado, Aloísio fechou os olhos e,
silenciosamente, clamou por todos os santos para que aquilo acabasse logo. De
repente, Seu Alípio parando de assobiar e descansou a tesoura sobre o aparador.
E com a mesma rapidez de ação, pegou um instrumento que parecia um boticão
ampliado, tombou fortemente a cabeça de Aloísio para frente e começou a passar
aquela ferramenta da nuca para o alto da cabeça. E como doía! Conforme subia,
aquele aparelho ia puxando de maneira ríspida os fios de cabelo, roçando
asperamente a pele da cabeça. Uma sensação horrorosa. E Seu Alípio voltou a
assobiar...
Aloísio nem ousava abrir os olhos.
Tinha receio de olhar o chão e constatar que todo o seu cabelo estava ali. Só
queria que aquilo acabasse logo...
E Seu Alípio parou de assobiar. Guardou
aquela estrovenga no aparador, junto com a tesoura, e começou a retirar a
toalha.
Aloísio não queria saber de álcool, de
talco ou de água Velva. Nem aceitou a oferta de Seu Alípio para se olhar no
espelho, e nem se atreveu a passar a mão pela cabeça porque não queria constatar
o que já sabia. Não queria saber de nada. Queria ir para casa, e lá, sozinho,
olhar o que havia acontecido com os seus cabelos.
Pegou o troco dado pelo barbeiro, e foi
rapidamente rumo à porta. Não precisou chegar em casa para se certificar do ocorrido.
O vento que lhe batia na nuca, o sol que lhe ardia na cabeça e as orelhas
proeminentes esculpidas na sua própria sombra refletida na calçada foram
enchendo o seu peito de raiva, enchendo os seus olhos de água...
Aloísio, com a mão enfiada no bolso, comprimia
com força o velho canivete. Apertou o passo. Queria sair da vista de todos. Já diante
do velho portão, meteu o pé nos sarrafos já puídos, entrou em casa chorando em
silêncio. A mão, que tentava esmagar o canivete no bolso, desejava esmagar o
pescoço de Paulo.
Naquele momento, se não tivesse a mãe, e
se não fosse pecado, seguramente Aloísio teria furado o irmão.
Regina Ruth Rincon Caires
Toda segunda feira tem feira no Largo da Segunda Feira, na Tijuca. Esse mantra me ecoa até hoje, sou capaz de ouvir a voz da minha avó, me apressando a pegar a sacolinha de minha propriedade (a primeira posse que tenho nos meus escaninhos) e partir com ela a sentir aromas, sons e emoções de uma feira livre que insistem em não abandonar minhas entranhas.
Levava eu uma bolsinha micra, exatamente para caber o agrião que, diziam as boas línguas, minha mãe e meu pai não dispensavam na salada. Muita mãe, muita avó, muito pai, muito avô, muito carinho, muita feira livre que não me arredam pé das lembranças. Ainda bem.
Muito bom não me desvencilhar dos tempos bem vividos, quando, na altura do meu campeonato, sou levado a frequentar a feira do Jardim Botânico no Rio, onde cheiros, atropelos, sons diversos e cores múltiplas me servem de gatilho a recordações.
No Largo da Segunda Feira, onde toda segunda feira tinha feira, havia o português Seu Manoel, conhecido à boca pequena como Mané Feioso, que de tão feio não resistiu ao meu comentário sincero: “O senhor é feio mesmo, hein?”, para desconcerto da minha avó contida e gentil.
Havia o Narciso, moleque descalço, pretinho hoje afrodescendente, que carregava com seu carrinho de bilha as compras até o edifício onde morávamos no quarto andar. A consciência antiescravagista não havia me envolvido, tanto que achava normal o menino subir quatro andares com as compras e entregar na nossa porta, em troca de uns meirréis e um copo d’água, que depois seria desinfetado com sabão de coco. Assim era o que era.
Havia o feirante que colocava água com açúcar na faca, para provar que o abacaxi estava realmente doce. “Vai uma provinha aí, freguesa? Tá tão docinho que parece que saiu de uma colmeia”. Ficava imaginando o feirante com aquela roupa de astronauta tirando o abacaxi do antro de abelhas com seus ferrões impiedosos que saiam da bunda.
Mas nada é tão vívido até hoje quanto o Caminhão dos Olhos. Explico. Nas ruas adjacentes do Largo da Segunda Feira, onde toda segunda feira havia uma feira, estacionavam vários caminhões que transportavam mercadorias em caixotes e barracas desmontadas. Um deles tinha um olhar especial.
Era um Chevrolet dos anos 50, cuja frente apresentava um gradil de radiador cromado sobre o qual dois faróis me sorriam com contornos de traços disneyanos de pestanas, sobrancelhas e expressão generosa. Magia pura. Minha avó encerrava a função me levando a me despedir dele e ele estava lá, encostado numa esquina a retribuir meu encantamento com mais encantamento, como se aprovasse meu carinho em levar para a família a sacolinha com agrião dentro.
Não havia segunda feira, onde sempre havia feira no Largo da Segunda Feira, que eu não celebrasse o olhar carinhoso de um caminhão para um menino sonhador. Era uma troca de cumplicidade, que até hoje, de olhos fechados, sinto o quanto de real perdura no meu eterno imaginário infantil, transportando a mais pura sabedoria.
Numa recente segunda feira ousei em ir até o Largo da Segunda Feira, na torcida teimosa que houvesse uma feira e um caminhão que me olhava carinhoso na rua adjacente. Claro que encontrei nada. Não me deparei com feira alguma, apenas um amontoado de camelôs, pedintes, indigentes, passantes sem romantismo, excluídos, gente que importa aos olhos dos sensíveis, porém invisíveis ao cotidiano, vagando por sobrevivência, atenção, justiça, cuidado, oportunidade, comida, teto.
Muito menos na rua adjacente havia um misero caminhão. Tudo tomado por carros sem personalidade, sacos de lixo semi abertos, mendigos, famílias embrulhadas em papelões e cobertores imundos, crianças sem calça, cachorros magros, vivendo ao relento dos dias de hoje. “A que pontos chegamos?”, diria minha avó simplória e católica se aqui estivesse.
Contrariando a realidade dos fatos, consegui enxergar os olhos do Caminhão dos Olhos. Eu fechei os meus e vi o caminhão olhando para mim. E o fitei e ele me fitou, sim, o imaginário afetivo pode tudo. Seus olhos desenhados me disseram, com a eloquência de sempre, que o que a gente enxerga através da memória é o combustível para seguir vivendo.
Olhar a vida com olhos felizes e inocentes do Caminhão dos Olhos não é um saudosismo paralisante. É um jeito maroto de não permitir que os arredores nos deixem cegos. E que o futuro não nos mate de medo.
Não creio que o presente seja o instante absoluto da vida, "viver o presente é o que importa", dizem alguns, muitos, milhares manipulados pela cultura imediatista. Pois arrisco que o "aqui e o agora "só existe porque houve um "antes", que influenciará o "depois".
É o passado que, através do presente, você evoca numa entrevista de emprego, na energia de um projeto futuro, lhe dá estofo para um desafio por vir, constrói a pessoa que você é, produz a auto estima do visionário, alimenta o sonhador.
É provável que se queira apagar o passado. É provável não olhar para ele, jogá-lo para debaixo do tapete da cachola, fingir que o que passou, passou. Mas impossível negá-lo no inconsciente. E quando o inconsciente quer, não tem jeito: manda recados, sinais do que se bem ou mal viveu, sentimentos bons ou maus que podem ser administrados a ponto de não vestirem a carapuça dos manipuladores.
Meus filhos e meus netos não conheceram o Caminhão dos Olhos. Mas estou certo de que outros Caminhões dos Olhos já habitam suas memórias tenras e lhes iluminam a vida para o que está vindo por aí, com suas dores, delicias, imprevisibilidades, sonhos, escolhas, frustrações, desejos, indignações, potências e impotências. E naturalmente torço que considerem conscientemente a bagagem emocional e objetiva, a tal da História individual que carregamos como aprendizado para lidar com o futuro.
A vida é um piscar. Melhor aproveitar enquanto enxergamos a realidade, olhamos os arredores com indignação e percebemos que ainda podemos imaginar o Caminhão dos Olhos, sorrindo com esperança e afeto, servindo para alguma coisa agora e amanhã.
Não se trata de nostalgia doída, nem de expressão tardia pelo Dia das Crianças, muito menos do abominável e inerte “ah, no meu tempo...”. Mas é sinal de uma energia limpa da fonte da memória que faz a gente subir na boleia e seguir viagem. Temos sempre muito chão pela frente e um caminhão de lembranças carregado de vida.
Um brinde à memória que ilumina.
Acordado à beira da cama, suado, a um
palmo de se despregar, Nonato mirou o branco do teto, infinito; refletia o
vazio. Tem o ritual de passar, entre o limiar do sono e do despertar completo,
cerca de quinze a vinte minutos conjecturando sobre as dádivas de uma vida
digna. E isso lhe confere o significado da solidão, algo que alimenta há exatos
dez anos. E, também, qualquer coisa mínima, imperceptível para os demais, sente
um pouco de excitação nisso.
Depois da separação de Denise, a mulher
ideal, segundo seus sonhos, não havia sentido para mais tentativas vãs; perda
de tempo procurar dividir ou aplacar o que só cabia, de direito, à Denise.
Em dezoito de novembro de 2004, Denise
resolveu deixá-lo, sem sobreavisos. Levou consigo – o que não conseguia
discernir o porquê – dezoito pares de sapatos, três mudas de roupa e os gatos.
O resto, pelo que pareceu, poderia tocar fogo. Assim o fez.
O golpe dela está aí, pois que, sem
filhos, atribuía aos bichanos todo o amor que pudesse ter. Com o fetiche por
coxas torneadas, grossas, em sapatos altos, achou que, com isso, a leviana dera
a punhalada fatal, por mera implicância, despeito.
Não concorda com essas modernidades, de que
homem não pode ter uma, duas ou três à disposição. Ela, no entanto, havia
avisado: “Nonato, tu pensa que sou uma cadela vagabunda, que pegou no meio da
rua? Tu te prepara! Ou tu te ajeita, ou eu mesma dou um jeito nessa esbórnia!”.
Nonato acha, seguro, que é histeria de mulher; que mulher tem de dar chilique:
normal; que a ebulição hormonal depunha contra ela; que, desgraçadamente, já
que teria de passar o resto da vida assim, aturando-a, poderia ter uma, duas ou
três por fora: compensação.
Ainda convicto e magoado, e feliz pela
solidão forçada, gasta quase todos os rendimentos em compensações mundanas.
Fora o apartamento hipotecado; o vazamento que escorre para o apartamento de
baixo, como dilúvio, pelo banheiro; o débito do cartão de crédito, que soma a ninharia
de dez mil reais; problemas no fígado, saturado de gordura e de escárnio, e de
raiva, e de rancor; Nonato se considera um homem de sorte, porque seu
presidente anda bem, sua equipe ministerial anda bem; porque o Brasil anda bem,
e não há razão, portanto, fora os inconvenientes, para preocupações.
Ao tomar o café, lembra-se que a esquerda
foi dizimada, como prometera o presidente, e isso lhe conforta. Lembra que a
solidão é uma dádiva nesse mundo cão. Revigorado, pega um pedaço de pão, passa
manteiga, abre um sorrisão e degusta, com delicadeza e certeza, para comemorar
mais uma data de solidão e de autonomia.
Lembra, também, da Denise; sempre se
lembra da Denise, que tripudia de sua honra. Mas soube que ela é petista, e
deseja que vá para o quinto dos infernos. Congratula-se, ainda mais, com o fim
da mamata; e se prepara para exaltar a glória da pátria na igreja, logo à
frente, há um mês anunciada, a rigor, com paramentos militares. Sente-se pronto
e aliviado. Declara-se, batendo no peito tomado de orgulho: “Sim! Sou mais um guerreiro,
instrumento da paz nacional”.
A vontade que tenho é não deixar que nada escorra de você e se perca. Minha boca junta e engole o que você derrete para mim. Tiro as roupas temporárias de seu corpo e estico a língua para tudo recolher. Ao cravar os dentes em uma manga madura, alisando, tocando e chupando o grão de onde principia uma existência nova, imagino seus olhos presenciando eu comer a fruta, olhando ao mesmo tempo para seu corpo. Minha boca e minha língua absorvem com ímpeto o que escorre da superfície da manga descascada e da sua pele, sem receio de saber onde termina uma e começa outra.
Viu-a pela
primeira numa foto publicada por um dos seus amigos no Facebook. Era uma cena
de praia, como muitas outras publicadas por todo o lado no verão, e apesar de
estar uma das pontas, como que isolada do grupo, o seu olhar foi imediatamente
atraído por aquela figura esbelta de fato de banho escuro e discreto. Ocupou as
horas seguintes a pesquisar as fotos do amigo em busca de outras em que ela
tivesse sido incluída, de preferência com uma referência ao nome, embora achasse
improvável tê-la visto anteriormente sem nunca ter reparado nela.
Não
teve êxito, mas lembrou-se então de pesquisar também os amigos Facebook desse
seu amigo que não conhecia, deduzindo que se nunca a vira então não pertencia
ao seu círculo habitual. Deparou-se com muitas portas fechadas — aparentemente havia
mais pessoas atentas à segurança cibernética do que imaginara — mas acabou por
encontrar uma conta totalmente pública com fotos que a incluíam e, melhor
ainda, com tags nas figuras representadas.
Tinha
um nome exótico, Martina Madruga, tornando-se pois fácil descobri-la no
famigerado Facebook. A parte visível da sua página, bastante completa, por
sinal, confirmou a sua primeira impressão: era uma verdadeira beldade, uma ruiva
verdadeira de pele muito leitosa e olhos muito negros, uma combinação pouco
comum e que o encantou. E casada, infelizmente.
Sabia
que se lhe pedisse amizade diretamente havia boas probabilidades de ser aceite,
tendo em conta os vários amigos em comum, pelo menos de acordo com o Facebook.
Mas era uma abordagem demasiado direta para o que tinha em mente, uma relação bem
mais íntima.
Começou,
pois, por criar um perfil falso, incluindo uma foto sua com bigode, cabeleira
loura (em vez dos seus vulgares cabelos escuros) e dados totalmente imaginários,
da data de nascimento à ocupação, mas tendo o cuidado de citar apenas gostos e
interesses que lhe pudessem interessar ou, pelo menos, não lhe repugnarem, sem
mentir totalmente mas também sem criar uma correlação perfeita com os dela.
Entreteve-se até a tirar algumas selfies em fundos falsos, muito à “Green
Card”, para dar a ideia de que era uma pessoa real.
O passo
seguinte era pedir amizade aos amigos dela ou aos amigos dos amigos. Começou
pelos que tinham inúmeros amigos, centenas deles, deduzindo, acertadamente, que
não eram muito criteriosos e que aceitavam qualquer pedido de amizade.
Quando
já tinha um número razoável de “amigos” comuns atreveu-se então a enviar-lhe um
pedido de amizade. Foram dois dias de sobressaltos e de consultas quase
contínuas à sua página até receber a tão cobiçada aceitação.
Abriu
então o resto do perfil de Martina e descobriu, espantado, que o marido era um
quadro superior numa das suas empresas. Não se lembrava de o ter encontrado, o
que não era para admirar, antes de falecer o pai deixara tudo bem “oleado”,
permitindo-lhe passar dias sem pôr os pés no escritório de onde supostamente
geria o poderoso grupo económico que herdara.
Senhor
destes dados, deu início à sua ofensiva em duas frentes.
Por um
lado, saber tudo sobre o marido, tarefa facilitada uma vez que tinha acesso
direto aos dados completos de todos os funcionários das várias empresas. A
outra frente, e a mais importante, conquistar Martina sem lhe revelar
inicialmente quem era.
Começou
por pequenos comentários às publicações dela e pela publicação na sua própria
página falsa de pequenos textos e fotos que sabia que ela iria apreciar.
Descobriu que Martina tinha um círculo de amigos mais íntimo com quem
partilhava algumas coisas que não eram para “consumo geral” e tanto manobrou e
publicou que ao fim de umas semanas conseguiu entrar para ele.
Seguiu-se
então a fase mais delicada e arriscada, conseguir uma comunicação só entre
eles. Começou por pequenas mensagens privadas sobre filmes que vira ou livros
de que gostara (e que sabia que ela apreciaria, com base nos seus gostos
publicados), seguindo-se mensagens um pouco mais longas sobre diversos temas e
culminando finalmente numa proposta de troca de e-mails, aceite após algumas
hesitações.
Agora
sim, podia “entrar a matar”. Partindo do princípio de que a honestidade é sempre
a melhor arma, começou por confessar que o nome e a foto que usava eram falsos,
usando como pretexto a perseguição online (inventada) de uma ex-mulher (esta
sim real). Foi tão lógico nas suas explicações que Martina não só as aceitou
como teve até pena dele, forçado a recorrer a estratégias dessas devido ao fim de
uma má relação.
Foi a
abertura que procurava para passar a assuntos mais íntimos. Em breve trocavam
confidências e detalhes sobre as respetivas vidas, coisas que costumavam
esconder de amigos e até de familiares. Mas era a Internet...
Mais
íntimos não podiam ser, a menos que levassem a relação ao nível seguinte e a
tornassem física, encontrando-se pessoalmente.
Mas Damião
evitou sempre fazê-lo, esquivando-se até a vagas sugestões de Martina para que
tomassem um café nalgum lado. Tinha planos a longo prazo e se tudo isto viesse
a dar para o torto queria poder dizer, com total sinceridade, que nunca a
seduzira, que nada se passara entre eles, que fora apenas uma amizade
eletrónica platónica.
Martina
começou, eventualmente, a falar-lhe dos problemas que o marido estava a ter no
serviço. Sem que soubesse como, tinham surgido boatos de várias fontes sobre
desvios de dinheiro, despesas falsas, incapacidade para as funções que exercia,
enfim, todo um conjunto de insinuações e denúncias que acabaram por forçar os
seus superiores imediatos a investigá-lo.
Nada
encontraram, mas partindo do velho princípio de “não há fumo sem fogo” os
colegas começaram a evitá-lo e foi preterido numa promoção que semanas antes
estava mais do que garantida.
Tudo
isto levou a uma forte depressão, que Damião foi acompanhando através dos
relatos e queixas de Martina. Os conselhos e mensagens de apoio que lhe enviava
sobre o assunto cimentaram ainda mais uma relação platónica mas muito mais
íntima do que muitas relações bem físicas.
O
estado do marido de Martina foi piorando a olhos vistos e não foi exatamente
uma surpresa quando uma noite em que tinha estado a beber sozinho num bar perto
do escritório teve um acidente grave com o carro no regresso a casa, tendo
falecido dois dias depois sem ter recuperado a consciência.
Destroçada
e amargurada com os boatos que tinham levado indiretamente à morte do marido,
Martina cortou com quase todos os amigos e familiares que tinham, de certo
modo, aceite esses rumores como verdadeiros, virando-se cada vez mais para o
amigo virtual que sempre a apoiara.
Combinaram
finalmente um encontro, gostaram ainda mais um do outro agora que se conheciam
a sério e passadas umas meras semanas da morte do marido, casaram numa
cerimónia discreta.
Nas
vésperas do casamento, Damião passou algumas horas a eliminar o mais
completamente possível os vários perfis falsos que criara para lançar boatos e
insinuações sobre o marido de Martina. Sabia que dificilmente seria descoberto,
sobretudo depois da morte do alvo, e, acima de tudo, porque sabia exatamente
como agir para não deixar rasto. O curso anti-hackers que o pai o forçara a
frequentar quando pensara pô-lo à frente da segurança cibernética do seu grupo
de empresas dera bons resultados... talvez não exatamente como o pai esperara.
Bem
como o seu passatempo favorito, sempre desdenhado pela família como indigno de
um rapaz rico, restaurar pessoalmente automóveis em mau estado. Fora o que lhe
permitira sabotar o carro do marido de Martina de um modo tão perfeito que
qualquer investigação ao acidente só poderia resultar numa de duas conclusões,
acidente provocado pela mistura de álcool e antidepressivos ou suicídio
encapotado.