Dela
era uma lacuna no sorriso, um vão peculiar, e ao querer suor e paixão do esposo
gritava o buraco em assovio alto; caiu a Neiva de boca nele, assim falava a
gente dos apartamentos, e mesmo os cães calavam-se nas madrugadas de pele
quando eram conquistados por aquele nhi-nhi-nhi. Delícia de sensação, era a
crença de todos, pois enquanto ela sorvia o marido o universo revela-se
harmônico e bom. Até Luciano, velho resmungão do último andar, acalmava-se ao
escutar o silvo, a seus gatos confidenciando,
Essa
mama com fé de mártir.
Neiva
era jovem e se esvaía em carne branca. Os quadris aumentavam a impressão dos
pés e joelhos tortos, e as pernas, grossas, contrastavam com a cintura fina e
os seios pequenos. No rosto de olhos curiosos seguia uma expressão meiga,
ingênua, posta em descrença quando arregaçava os lábios e mostrava o vão
superior – vão que alcançava, além dos ossos, a alma. Bela, recatada e do lar,
do silvo não havia segundo, nem menos, para começar: entre calor, entre chuvas,
iniciando o assovio de Neiva cessavam sons e rumores e os movimentos
abreviavam-se ao mínimo, o infinito exibindo um elo devasso em sua ordem;
também o trânsito minguava e fugia longe, como se existissem momentos também estimados
pela sorte ou sob sua guarda.
Vencia
seis anos o casamento, o noivado, a inocente sobreposição das mãos, mais os
males, alegrias e opostos, e provação nenhuma foi isso. Provação foi Neiva ir
ao dentista, decidida a colocar um artefato odontológico de molas e borrachas;
haveria de fechar o buraco, o vão, e o especialista, homem reto, retilíneo e
religioso, reconhecendo a tentação da fissura, aceitou por renovar o sorriso e
o pudor de quem previa a perdição. Em casa, vaidosa e segura de eliminar um
defeito, sorriu para o marido. Ele nada disse, ficou mudo; quem era para julgar
pouco? À noite, sob lençóis onde silhuetas se formavam, onde iriam se formar,
Neiva o devorou em silêncio. Gafanhotos soaram acima da sucção, assim como as
conversas e batidas nos corredores, e o casal, sentindo isso, a violência sobre
o encanto, de certa forma soube que a realidade jorrara ali.
Nos
primeiros dias, moradores e animais estranharam o sossego, a renúncia do apito;
então aceitaram a ordem recente como a de sempre, verdadeira, afinal aquele
guincho sexual constrangia valores e consciências, denunciava vontades obscuras
e há muito rejeitadas. Melhor a quietude, conjecturavam, e esqueciam o esôfago
de Neiva, instrumento digno das grandes orquestras naturais. Uma semana e já
ignoravam suas melodias de outrora, e quanto mais obliteravam as lembranças
mais a vida inclinava-se à frente: ruas escureciam no auge da tarde, brisas
violavam janelas e arbustos. Entristecidos, a menor sensação crescia com
intuito de equilibrar os estímulos ausentes, e logo embates surgiam nas
escadarias e estacionamentos subterrâneos. Eram vislumbradas aparições, perfis
brancos e luminescentes encaminhando-se ao fosso dos elevadores, risos
enigmáticos surgindo na extensão das garagens; ocorreram invasões, assaltos,
sentenças jamais ditas e que anunciavam uma rotina ordinária, fora da pacífica
ordem criada por Neiva e seu esposo. Os dois também se enfrentavam, dia sim e
dia não, e ao final das batalhas reconciliavam-se e choravam juntos,
questionando o porquê das ofensas, agressões.
Nessa
época ela já se livrara do maquinismo dental; o vão, fechado, era devaneio de
ontem. Acostumaram-se a discutir durante o café da manhã e, num desses,
cuspindo manteiga e leite, Neiva levantou-se da mesa. Ante um comentário jocoso
acerca de suas pernas, ante a irritação do ventre, arremessou uma vasilha
contra o marido: furiosa por errar, correu em sua direção, mas resvalou e caiu,
com o rosto ofendendo as cadeiras. Passou manhã e tarde nos braços do esposo,
falando de acontecidos e supostos, e quando na cama, à noite, beijaram-se eles
mesmo do sangue verter. Neivinha desceu e desceu visando à desforra – e ao
absorvê-lo maltratava o silêncio, puxava forte, exigia do pescoço; cada ir e
vir mesclava êxtase e dor, e agindo assim um dos dentes da frente caiu.
Vendo-o
escorrer pela virilha rabiscada em pelos, ela persistiu, negando a educação e
as leis criadas por fracos e confusos, e ouvindo acima dos suspiros apaixonados
o apito que voltava a soar graças ao sacrifício do osso.
Essa
noite, todos dormiram bem.
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