Que se diga a verdade, as pernas abaixo não eram de
sapo e sim de rã, mas como Wanderléia saberia disso se jamais aventurava-se
longe do asfalto, se jamais queria o fora dela ou das unhas com motivos
carnavalescos? Ora, era ela mulher de cidade, do aço, e para identificar além
do rato ou da barata, quiçá da formiga, reclamava auxílio alheio e incalculável
força emocional. Em sua defesa, esclareça-se, a citação ao bicho repetir-se-ia
nas mil versões do caso, mesmo quando corrigissem o narrador, mesmo quando o
óbvio surgisse e pulasse na ponta da língua. Assim são as histórias, nascidas
entre erros e enganos, impossíveis de se contar à perfeição; e, mais, exigem um
dissecar inverso e criativo que una e costure os fatos ignorados – seja através
da fantasia, seja através de outras espécies de conhecimento.
Inquirida um dia pelo primo, Nésley, se comeria
sapos ou rãs, ela negou, ofendida e curiosa de saber se a julgavam esfomeada.
Não obstante, aceitou o apelo do Procurador Soares, homem novo com nome de
velho, homem por quem ansiava um naco, convidada que foi nos corredores do
Ministério Público; era tarde calorosa essa quando o ar-condicionado deixara de
funcionar e os servidores passeavam, saltitantes, pelo corredor.
– Por minha conta, cantou ele ao final do convite, e
acertaram o encontro para sábado.
Agora jantavam, as pernas de rã abaixo, e Wanderléia
contemplava Soares (que cuspia ao falar) e os botões vermelhos de seu terno. Já
engolira a primeira delas, e, gostando, espremeu suco de limão na segunda,
vendo-o sumir por entre a pele frita e alaranjada. Separou, então, o maior
pedaço e o alçou aos lábios; apesar da língua seca, sentiu desmanchar-se a
fibra em suco próprio, cremoso. Acima rodava um luxuoso candelabro de velas
amarelas, e as mesas aos lados, com rendas finas, espaçavam-se em lonjura
adequada para amantes e amores; à frente, uma janela panorâmica exibia o
anoitecer e o mais calmo dos lagos. Era a felicidade, assim julgou ela, sabendo
faltar somente a crença absoluta, sapológica, na figura de Soares como príncipe
definitivo.
Quem sabe se por ocasião da rã, quem sabe se pelo
anel de ouro no mindinho dele, recordou Wanderléia quando lhe contaram a fábula
do sapo que, beijado, transformara-se em príncipe. Buscando um amor fantástico,
mas conveniente aos seus desejos e limitações, e, também, ao modo como narraria
o banquete às amigas, decidiu por beijar a perna seguinte antes de comê-la –
querendo assim igualar esse momento ao da história.
Agindo, pegou uma e nela roçou os lábios; ao
sugá-la, estremeceram copos e talheres ante o barulho da sucção. Wanderléia
chupou, e chupou forte, e com os olhos revirados, brancos, sentiu o membro
trancar em sua garganta. A seguir, entre terror e alegria, ergueu-se, enquanto
da boca originava-se um rugido de músculos violentados. Soares, célere e
prestativo, socorreu-a, e abraçando-a por trás executou a Manobra de Heimlich,
ou a esperança do engasgado: pressionou e soltou as costelas, mas logo sentiu-a
desfalecer, morrer para sempre e para depois.
Lá fora, no lago, eram mil os coaxares.
0 comentários:
Postar um comentário