Cansada
de acordar todos os dias, ela faz-se de morta sobre a cama. As cortinas
corta-luz protegem-na de tudo que viceja além da inútil janela do quarto. Lá
fora, a chuva banha as calçadas tomadas por crianças nuas. O sol, mandrião, se
esconde entre nuvens espessas enquanto bueiros entupidos transformam a alameda
em um rio caudaloso. Vira-latas ilhados, barcos de papel, chinelos perdidos, varais
nus.
A
ponta de seu pé escorre para fora das cobertas e ela recolhe os dedos com
urgência. Dias assim são capazes de corroer o esmalte das unhas, e ela sabe que
não retornará à manicure. Todas aquelas mulheres escravizadas pelo desespero de
apresentar uma aparência impecável, de parecer mais jovem. E riem! Deus, de que
tanto riem? Ela não. Ela não ri mais. Pinta as unhas com a mesma gravidade que
guerreiras icamiabas coloriam seus corpos para o rito, para a luta.
O
telhado tremula e ela tenta prender a respiração até a chuva passar, mas tem pulmões
fracos e logo desiste. Soca o travesseiro e afunda-se um pouco mais no colchão
de molas. Os olhos fechados procuram o sono e tudo que encontram é a água que
escorre ácida e ligeira sobre o telhado quebradiço. Percebe que naufragará de
vez caso não resista bravamente à tormenta.
Com uma nesga de disposição para se
mover, senta-se sobre a cama transformada em errante bote salva-vidas e toma três
comprimidos. Anseia que um tímido raio de sol acenda dentro de seu peito
escurecido, chama que há dias ela aguarda em vão. Queria ter ouvidos moucos,
pois o riso sob as biqueiras agride sua necessidade de inexistir. Vermes
subcutâneos abrem caminho por seus poros, mas ela não sente nada. E não sentir
dói.
Pensa em rezar, mas sabe que Deus não
está lá, nunca esteve. Talvez as ciências. Ai! As ciências e suas perguntas
herméticas, de emaranhadas soluções! Quem sabe um poema, um filme, uma melodia.
Cantarola Caetano enquanto tenta acender um cigarro entre dedos sísmicos. “Quando eu me encontrava preso na cela de uma
cadeia, foi que vi pela primeira vez as tais fotografias...” Gira o tambor
do isqueiro três, quatro vezes, mas não há gás. Sem poder tragar do veneno que
lhe abranda a estenose da alma, desaba.
O choro emerge de lugares que ela não
conhece, transborda e arrasta violento o pouco que lhe resta de sanidade. Os
soluços confundem-se aos trovões que atravessam o céu como o ressoar atmosférico
de seus lamentos. Ela chove. Mas seu desaguar não fecunda nada, não traz alívio.
É um transbordar estéril, de dores vazias, sem razão de ser, mas tão ou mais
verdadeiras do que qualquer estraçalhar de ossos e lacerar de carne.
Sente que irá afogar-se em si mesma.
Levanta rechaçada, cambaleia pelo quarto e depois se encolhe em um canto de
parede. Não consegue respirar. Sufoca. Mas a morte não vem. As paredes se
comprimem e o chão torna-se gasoso. A náusea, a angústia ao perder-se no mais remoto
afastamento de todas as coisas. É um mundo em queda livre, sem apoio, sem
amparo. Não há luz no final do túnel, na extrema profundeza do poço. A
escuridão se adensa e ganha uma viscosidade que retarda a velocidade da queda.
E ela tem pressa em espatifar-se, precisa que isso acabe.
Esgueira-se destroçada para debaixo da
cama em busca do que lhe servia de refúgio em sua distante infância e encontra
algo parecido com alívio. Está esgotada. Seu corpo adormece antes que ela perca
a consciência. Não sabe se pelo desgaste físico da aventura ou pelos comprimidos
que fazem efeito. Antes de desligar-se de si mesma, pensa que talvez amanhã
consiga sair de seu quarto. Mas, hoje não. Não com essa chuva que ameaça tudo
lá fora.
Emerson
Braga