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quarta-feira, 22 de março de 2023

As Duas Bestas

 


De entre escombros e ruínas, de vidros estilhaçados e metais retorcidos, de corrimentos e manchas e afluxos, de entre o selo das intempéries assomava a mansão negra e seus andares. Assentada num jardim onde o mato estabelecera seus domínios e propósitos, onde uma fonte de mármore glorificava três anjos ou gárgulas infantis cujos olhos lacrimosos, e cujo desespero, advinha das chuvas, a casa destoava do antigo bairro industrial ao erigir-se em detalhes: vidraças incólumes, não obstante a mantilha de poeira; cortinas e fechaduras; sinal nenhum de violação.

A desbravar a rua, sujeito ao itinerário das entregas, o Carteiro exercia sua liberdade com os olhos, e as ruínas ele escrutou até acreditar na inocência das sombras ou no descaso dos sons. Atarracado e forte, sua existência era circunscrita ao uniforme, e de parar em frente à mansão, de admirá-la em silêncio e através do silêncio, da bolsa retirou um envelope retangular, branco, e leu as faces do papel. Então contemplou a porta, o número acima dela, e contemplou a grade e seus vãos e, por fim, a maçaneta do portão. Colocou o invólucro embaixo do braço, bateu palmas.

Um segundo, soou o grito oriundo das basculantes frontais.

No rosto do Carteiro o sol firmava sua carranca, e a camisa embebia-se em suor. Pelas cercanias o chirriar de duas corujas manifestava-se como o bater de um coração oco e malfadado. A porta escancarou-se e do breu distinguiu-se um homem alto e magro, calvo, o terno negro a contrastar com o alvor da cútis. Ao passar pelo umbral ele abriu a sombrinha de hastes enferrujadas, aprumou-se, ateve-se à escuridão por si concebida e caminhou até estacar diante da grade que delimitava o terreno. O Carteiro encarou-o, dir-se-ia assombrado com extravagância da figura ou com a ausência de cabelos, sobrancelhas, cílios ou rugas.

Pois bem, disse o Estranho, e sorriu.

O Carteiro estendeu e enfiou a mão por entre duas barras, o envelope em evidência. Do pulso avançar o Estranho cingiu-o e segurou-o e, com um movimento vertiginoso, além das apreensões, mordeu-lhe o antebraço.

Demônio, gritou o Carteiro e lutou para soltar-se, atuou em oposição. Malgrado o sol não o atingisse, não violasse o manto das trevas ou a castidade dos tecidos, o Estranho recuou. Em seu rosto o sangue emoldurava-lhe a boca, e os olhos, continuamente abertos, também se sujeitavam às sortes do vermelho.

Maluco dos infernos, gritou o Carteiro assim do Estranho evadir-se para dentro de casa, não antes de renunciar à sombrinha e ao ato de trancar a porta. Como se em busca de socorro ou de testemunhas o Carteiro voltou-se às ruas, às bocas de lobo e ao meio-fio, e abandonado por Deus e por seus irmãos ele encetou uma fuga incerta e desesperada. Ao cansar ou julgar-se seguro, distante da mansão, sentou num murinho de tijolos e examinou o ferimento. Não era profundo, e o sangue cessara de manar. Da bolsa ele retirou um frasco, sacudiu-o e borrifou a lesão, e, entretanto, não acusou o açoite do álcool. Tremia o pulso injuriado, tremiam as mãos. Enfaixou o antebraço com as ataduras do kit de primeiros socorros e retomou sua caminhada.

Na Central da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, aos curiosos, fingiu a verdade. Um cachorro avançou, disse, à guisa de esclarecimento. Nada de mais, mas vou ao médico, asseverou, não obstante na garganta o sobrelevar de veias e vasos sanguíneos reclamasse maiores e melhores motivos. De volta às ruas ao fim do expediente, entre o anoitecer e os tantos outros sóis da metrópole, e desmentindo as próprias palavras, seguiu para sua casa, onde, convalescente, delirou de febre e esvaiu-se em suores de coloração amarelada. Refeito à manhã, o rosto corado e macio como se rejuvenescido, com o seu automóvel dirigiu-se à mansão maldita. Era sábado. Estacionou em frente às grades e, de dentro do veículo, escrutou os arredores, a casa em si, e nem o céu salvou-se de julgamentos e sentenças. Porém não acusou a visão do estranho ou de arbitrariedades incomuns. A porta encontrava-se fechada, e assim as janelas e basculantes. Atrás dos vidros, cortinas assomavam feito tapumes. Regressou ao lar.

Segunda-Feira, e do ferimento restara um hematoma. O Carteiro não comera e mal dormira, e anunciava-se em olheiras e alvores faciais. Mordia os lábios, então ressecados e violetas, e, todavia, cantarolava e sorria, murmurava a sós. De ingressar na Central, renunciou a curiosos e curiosas e pôs-se a trabalhar. Separou a cota diária de cartas, definiu seu itinerário, emudeceu ao examinar o último dos envelopes. A missiva, subscrita por um tal de Dr. Nigel, e procedente da Transilvânia, era endereçada à mansão negra. O destinatário chamava-se Almon Sarif. Após verificar os carimbos, se abas e dobras estavam seladas, jogou os demais invólucros na bolsa e, apressado, troteou até o covil do sanguessuga. Era um dia de sol como para ele sempre haveria de ser. Ruas desoladas, silêncios acintosos. Defronte à casa, amarrotado e suado, bateu palmas. Em dois, três minutos, a porta abriu-se, e do vestíbulo destacou-se o homem de preto, a sombrinha aberta, o rosto inexpressivo e branco. Aproximou-se ele do portão e, ao parar, nada falou, somente estendeu a mão livre, coberta por uma luva de couro. O carteiro não entregou a carta, não se moveu, mas, levantando-a, disse,

Vem pegar.

Antes de terminar a frase o Estranho segurava-lhe o pulso por entre as grades, e ao ser forçado contra as barras o Carteiro reagiu e socou e esmurrou a sombrinha, livrou-se das garras alheias e evitou de ser abocanhado. O Estranho posicionou o guarda-chuva sobre si e, sob gritos e insultos, em desesperos debandou rumo ao interior da casa. Tomado de fúria, com a íris dos olhos esfumaçadas, à pedradas o Carteiro arrebentou dois ou três vidros, gritou. A pele da face e dos braços avermelhara-se como se há muito exposta ao sol. Ele afagou-se, passou a mão testa e grunhiu, aos saltos distanciou-se. A carta, além da cerca, restou por sobre a grama.

Na Central, tirou sua garrafa de água da bolsa e sentou-se. Petrificado contra o encosto de uma cadeira, o olhar perdido nos mais evidentes vazios da parede, desatarraxou a tampa e sorveu um gole. De pronto convulsionaram-se os músculos e nervos do pescoço, enegreceram-se as gengivas. Ele cuspiu o líquido no pavimento, com força ou ódio jogou a garrafa longe, massageou a garganta. Balbuciava profanidades quando uma das estagiárias aproximou-se, indagou acerca de seu estado.

Tudo bem por aí?

Era alta, corpulenta, e o sorriso bondoso lhe maculava o semblante.

Tudo, retrucou o Carteiro, a face voltada para o chão. É o calor, a minha pressão, acrescentou, e fios de saliva rosada pendiam dos lábios.

Vou chamar o supervisor, disse ela e, ao virar-se, alinharam-se o traseiro e o rosto do Carteiro. Este levantou a cabeça. O bumbum, formado por duas circunferências exatas, distorcia as estéreis linhas do corredor. Ele abriu a boca. Pontiagudos e longos, os caninos assomaram da escuridão. Antes de a menina andar, o Carteiro agarrou-lhe as pernas e mordeu-lhe uma das nádegas.

E essa é a sua história.

Ou, ao menos, a estória que, prestes a ser condenado, narrou ao juiz da vara criminal.


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domingo, 19 de março de 2023

De dá dó

 


 

Ulisses era um menino esperto. Segundo a mãe, “muito acima da média”. Era considerado um mini gênio pelos que o conheciam. Logo foi incentivado a ir a programas de televisão. “Todos têm o direito de saber do prodígio”. Saiu, veja só, em rede nacional, num programa dominical. A mãe e o pai já projetavam uma vida à la Maisa – aquela. Ora, se o menino, aos três anos, proferia os nomes de quase todos os países do globo, além dos estados e capitais do País, e ainda “falava inglês” – claro, há um tremendo exagero, se ela mal sabia falar o português –, poderia render um bom futuro. Os seus olhos se transfiguravam em cifras, monetização pura, quando se tocava no nome do filho. Para isso, o pequeno Ulisses tinha de passar as tardes, que adentravam as noites, decorando cada vez mais coisas; era um escravo do “conhecimento”. O pai se dizia visionário, e o colocava no alto posto de apresentador de televisão, porque tinha “traquejo para a coisa”. Prevendo a fama, os pais foram à escolinha de bairro para determinar que o pequeno só ficaria ali – o que seria uma honra para o colégio – se tivesse uma educação especial, com uma professora à sua disposição. A diretora entendeu a necessidade, mas relatou que a escolinha já mantinha uma professora e uma psicóloga, que atendiam muito bem os casos de crianças com superdotação, altas habilidades e outros casos particulares do gênero. Refutando, o pai e a mãe, em uníssono, disseram que a escola negligenciava, e não tinha condições de educar um “fenômeno”. A diretora contestou, delicada, relatando que Ulisses não era o único na escola. Para que ela foi dizer isso? Retiraram arbitrariamente a criança, que, agora, ficaria aos cuidados dos pais – ora com um, ora com outro, e o maior tempo com a babá. Como os contatos dos curiosos não faltavam, a mãe resolveu pedir as contas do “empreguinho” que tinha de vendedora de uma loja no centro da cidade. A avó de Ulisses, mãe de Tânia, esperneou, gritou, falou que os pais estavam doidos: Ulisses era só uma criança, que precisava viver como os demais, no meio da criançada de sua idade. Com o primo Artur, a mãe fez questão de cortar a relação – ainda que o filho insistisse em vê-lo –, e arrumou uma tremenda briga com a cunhada, mãe do menino, porque ele era um “mau exemplo” para o Ulisses; não estudava que prestasse; não tinha nada interessante a oferecer; era meio “leso”; e gostava de “brincadeira de pobre”. Afonso Lucas, o pai, contava o dia para, também, pedir as contas da firma. Calculava que em dois anos seriam, no mínimo, milionários. “Tânia, aquela menina lá da tevê saiu da miséria no segundo ano em que aparecia nos programas, porque foi contratada pelo Raul Gil. Temos de dar um jeito de ele ir lá”. Mas o menino não tinha um pingo de carisma. Era introvertido, com muito medo de gente. Para completar, pouco se movia ou falava; não olhava nos olhos; era um bichinho arredio, “de dó” – como no bom coloquialismo se diz. Fizeram de tudo para empurrá-lo ao dito programa: ligavam insistentemente para a televisão, falaram com produtores, com diversos funcionários do canal, e, enfim, marcaram o dia da apresentação. O menino, coitado, não sabia de nada. E, para completar, exibia uma espécie de cansaço pelo ritmo que levava – os pais, contudo, atribuíam isso à preguiça, brigavam com ele e forçavam-no a cumprir o cronograma traçado. Foram a São Paulo. Receberam tratamento de reis, com passagens, hotel e alimentação. “Tá vendo, Tânia, é daqui para melhor!”. Ficaram três dias na cidade que não para. A apresentação seria ao vivo, no sábado; e voltariam no domingo. A criança só saiu do quarto no dia da exibição, pois tinha muito o que decorar. Ulisses logo se encabulou com o grande carro da emissora. O motorista, simpático, tentava manter contato, e nada recebia de volta. Ao chegarem, cinco horas antes, foram encaminhados a uma sala preparada para as crianças e seus pais. De todos que ali estavam, Ulisses era o único que era mantido em clausura, estudando. Não deu outra: quando o “Seu Raul” chamou o menino ao palco, anunciando-o efusivamente, ele voltou correndo para os braços da mãe, em completo desespero. Seu Raul, então, foi tentar buscá-lo na coxia, mas o menino soltou berros e deslanchou a chorar. A cena foi chocante; a sensação era a de que o menino estava num matadouro, gritando como um porco a caminho do abate. O apresentador abortou a participação do menino, chamando, assim, outra criança. Tentaram mais uma vez; não teve jeito. Ao término do programa, Seu Raul foi tentar conversar com o menino mudo, que havia se enfiado embaixo de uma cadeira; nem os pais conseguiam arrancá-lo de lá. Foi levado à psicóloga da televisão, que recomendou ao menino um acompanhamento, pois que tinha indícios de autismo. Em Fortaleza, a constatação: era, sim, autista. Os pais rejeitaram o tratamento, agredindo a médica que os atendeu, chamando-a de incompetente. A saga terminou – ou começou uma nova – quando o menino foi internado, com estafa e síndrome do pânico. Os genitores decidiram que o filho problemático ficaria com a avó materna: não tinham tempo para lidar com isso. Ulisses, agora, é uma criança muito diferente, menos ansiosa e, sobretudo, amorosa. A avó, ele diz, é a sua “razão de viver”.






sexta-feira, 17 de março de 2023

O Sistema - poesia de Elizângela Moreira Gonçalves.







 





segunda-feira, 13 de março de 2023

À má fila - O instinto

 

À má fila – O instinto

 

Dia após dia, o pardal ia degustando os restos de comida que as crianças deixavam pelo chão. Às vezes as sobras quase não davam para meio do papo, mas essa desgraçada situação não acontecia com grande frequência. Na maior parte dos dias aquelas sobras davam para o almoço e também para o jantar. Bastava que os petizes, no entusiasmo das brincadeiras, deixassem esquecidos num qualquer canto os suculentos lanches.

O pardal para ter acesso à comida tinha que aguardar com paciência o final das brincadeiras. A partir daí, o movimentado campo inimigo passava a território livre e os despojos ficavam totalmente à sua mercê.

Nas primeiras vezes, o espertalhão do pássaro voava rasante, na tentativa de escapar ao controlo de qualquer radar inimigo. Avistado o objectivo, aterrava o mais silenciosamente possível e dirigia-se pata ante pata até à comida, sempre com as asas em posição de voo e a olhar para todos os lados não fosse aparecer-lhe o perigo pela frente. Aliás, cuidados redobrados era o que lhe recomendava o instinto de sobrevivência que lhe vinha desde o ovo. Uma espécie de sexto sentido que lhe segredava que o perigo estava sempre à espreita. Porém, com o andar dos tempos foi ganhando confiança, ao ponto de lassar os cuidados, deixando assim de sentir aquele chamamento do instinto. Sem precauções voava a descoberto e após a aterragem saltitava ligeiro ao encontro da comida. Aquela refeição tornara-se por demais fácil e isenta de perigos. Nem sequer tinha concorrentes à altura, chegando sempre sozinho às sobras.

Um dia sentiu-se indisposto e ficou empoleirado no ramo da árvore mais tempo do que o costume e, por isso, voou atrasado para o repasto. Depois de ter aterrado, procurou as sobras por todo o lado, mas nada havia para comer, nem sequer uma amostra de migalha para provar. O campo das brincadeiras estava completamente limpo. Talvez a miudagem não tivesse ido brincar, ou talvez a mãe não lhes tivesse levado o lanche, mas isso agora pouco ou nada importava.

O que desgraçadamente importava é que hoje o esfomeado pássaro teria de ir em busca de alimento para outro lado qualquer. Ao outro dia, ainda antes da hora habitual, o pardal levantou voo e lá foi com rumo certo. Pacientemente esperou pala sua hora e quando ela chegou aquilo é que foi saltitar em direcção ao apetitoso manjar. Contudo teve de refrear os instintos esfaimados, porque um anafado melro, mais que negro do que a própria fome, passou por ele e atirou-se sofregamente ao banquete. Pela certa o maldito intruso tinha descoberto o filão naquele sinistro dia em que ele se sentiu indisposto e decidiu ficar mais algum tempo no remanso do ramo.

Enfrentar directamente aquela ave negra nem por sombras, seria uma luta desigual. Teria de encontrar outra solução mais adequada à desproporção das forças em presença. De momento nada lhe vinha à mente, a não ser a malfadada ideia de mais um dia de jejum forçado. Mais tarde, no embalar suave do seu ramo, teria de procurar, naquele outro sentido que os pássaros têm, a solução para o problema em equação. Depois de muita procura na informação disponível no seu ADN encontrou um caminho seguro: tramar o figurão.

Como? À má fila! Bastava fazer umas malfeitorias no local das brincadeiras dos miúdos e atirar as culpas para aquele famigerado oportunista. Assim que o melro se foi embora, o pardal saltitou para vazio local, largou caganitas por todo o sítio e pirou-se antes que alguém tivesse oportunidade de o ver.

Quando a mãe dos miúdos viu toda aquela sujidade nem queria acreditar. Furiosa com tamanha desfaçatez pôs-se à espreita e reparou naquela ave negra que por ali se passeava. Certa de que aquele passarão era o culpado de toda aquela sujidade a mãe decidiu vingar-se. A vingança veio em forma de um fingido morango colocado estrategicamente num local bem visível.

Com os olhos postos naquele delicioso e suculento quase fruto estavam três potenciais candidatos: o pardal, sumido atrás de um arbusto, o anafado melro no lado oposto encoberto por uma árvore e um robusto corvo, passante de ocasião, poisado em cima dum poste. Cada um deles já chamava a si o pitéu quando, a menos de uma garra de distância do desejo, se instalou um gato, a lamber-se com todos os vagares que o tempo lhe tinha dado. O almejado objecto daquele trio tinha-se afastado para lá do infinito, segundo cálculos dos próprios interessados. Bastou, tão só, uma pequena hesitação, ir, ou não ir, e já era tarde demais. Mas se o acaso o trouxe e o destino o levou felinamente silencioso. Talvez tenha ido em busca de outro alimento, porque aquele morango, disse-lhe o instinto, não pertence à sua dieta alimentar. Agora que o alpendre se encontra vazio do indesejado felino, a mãe, à espreita numa nesga do cortinado, espera que o melro por lá passe em busca da degustação do dito morango. Porém, numa jogada de antecipação o corvo bate as asas e aterra primeiro junto ao objecto do desejo. O que o corvo não sabe é que aquele engodo não é um morango, mas uma chiclete assassina fingindo ser um morango que traz a morte no ventre. Ainda não sabe, mas talvez venha a saber momentos antes daquele instante em que a vida se faz morte. Por detrás das vidraças uma frustrada mãe olha para aqueles três pássaros que recortam o azul do céu.

 

 

 

 

 

 





sexta-feira, 10 de março de 2023

Confissão

 


O filho do falecido buzinava insistentemente em frente a pequena casa paroquial. Estava atrasado para a cerimônia de enterro.

Quando chegou, todos estavam impacientes e assustados. O homem, que ocupava o caixão lacrado, fora atacado pela fera. Mais uma vítima, na pequena Vila de Santa Cecília.

– Padre Cristóvão, o que acontece com o morto quando chega no céu e lhe falta alguma parte?

– O que chega ao céu, meu filho é a alma e o espírito não é material.

– Ainda bem, padre. Não sobrou muita coisa inteira do meu pai. O bicho não parece matar por fome, acho que é uma raiva insaciável.

– Como aconteceu?

– Dizem que depois de tomar uns goles ele fez uma aposta. Pegou a pistola e disse que acabaria com a besta. Foi até a encruzilhada e começou a uivar, como provocação. Uivou até cansar. Depois, ninguém ouviu mais nada. Acharam o corpo a uns dois quilômetros mata adentro. Nem sinal de que foi arrastado. Só um pouco de sangue na vegetação.

Na mesma noite da morte, um grupo de homens se formou e foram a caça. Sob a luz da lua cheia e com lanternas e tochas nas mãos percorreram todos os arredores e não encontraram nada. Uma senhora jurava que havia visto a criatura próximo da igreja. Coberta com pelos escuros, só o que se via eram os olhos que pareciam arder como brasa. Andava curvada, como que a tentar se apoiar sob quatro patas.

Depois do enterro, formaram-se várias rodas de conversas.

– Fazia tempo que o assassino não atacava gente – disse o delegado Pereira.

– Isso é coisa de onça – afirmou o prefeito.

– Se fosse onça, alguém já teria visto ela ou suas marcas.

– É lobo, melhor meio lobo, meio homem, afirmou o professor Leovegildo.

– Besteira. Lobisomem é lenda, invencionice. Deve ser mesmo é um assassino em série. Só não sei como é que ele transporta os corpos. Pra enganar a polícia, de vez em quando mata um animal.

– E como é que o senhor explica as marcas de garras e dentes nos ossos, delegado?

– Ainda não sei, mas vou descobrir. Por falar nisso, professor, o que o senhor fazia ontem à noite quando tudo aconteceu?

– Eu estava em casa, corrigindo as provas dos meus alunos. 

– Tem como comprovar?

– Posso apresentar uma pilha de provas.

– Fique tranquilo, foi só uma brincadeira. Ontem, quando tudo acontecia, eu fazia uma batida nas casas de luz vermelha e acabei chegando tarde. Quando soube do ocorrido, fiquei preocupado com minha santinha. Encontrei a pobre Shirley ajoelhada, rezando. Sabe como é a vida de policial, a família não sabe se você vai voltar vivo pra casa.

– Imagino o que ela tenha passado delegado, ainda mais depois do alvoroço na cidade com o sumiço do Pedro Tiriba – disse o professor.

– Acredita em lobisomem, Padre Cristóvão? – perguntou o prefeito.

– O demônio é capaz de tudo. Pode transformar a vida das pessoas. Gente boa pode se transformar num monstro.

– O senhor acha que pode ser alguém da vila, padre? – questionou o delegado.

– Até hoje não apareceu ninguém no meu confessionário dizendo ser o tal licantropo.

– Lica o que? Perguntou o prefeito.

– Licantropo, do grego lycos – lobo e anthropos – homem. Diz a mitologia grega que Zeus transformou o rei de Árcade, que lhe serviu carne humana, numa criatura meio lobo, meio homem – explicou o professor.

– E veio navegando até aqui? Nem mar nós temos. – Interferiu o Bentinho que já estava emendando uma bebedeira na outra e ouvia a conversa.

– Preciso ir. Daqui a pouco temos a Missa.

– O senhor parece cansado padre. Está pálido, com os olhos fundos – observou o delegado.

– Não passei muito bem a noite. Algo que comi deve ter feito mal.

– Difícil a vida de padre, não dá pra rejeitar a comida oferecida pelos fiéis, não é mesmo? Boa é a minha vida, que ninguém quer por perto. Dizem que desconfio de tudo. É a minha sina.

O padre apressou-se. Precisava atender às confissões, antes. Quando chegou ao confessionário, a primeira da fila era a mulher do delegado. Ela abusava do decote e da saia curta.

A mulher pregou os peitos na grade do confessionário e despejou:

– Padre, meu coração não me deixa em paz. É uma paixão atrás da outra. Eu me arrependo, venho até aqui, pago as minhas penitências, mas sou fraca e tudo volta a acontecer. Ontem, enquanto todos corriam atrás da besta, eu fazia a minha lição de casa com o professor Leovegildo. Ele é tão jovem, tão bonito. Não que eu não goste do meu marido, mas não consigo resistir.

– Tenha fé em Deus, minha filha. Ele é capaz de perdoar mesmo os imperdoáveis.

– Eu juro que pensei nas últimas penitências que me recomendou e antecipadamente eu orei. Pode perguntar ao meu marido, quando ele chegou ontem, cheirando a cachaça e perfume barato, eu rezava!

– Vou lhe passar as penitências de hoje.

– Padre, me dê dobrado, pois ontem pequei por pensamentos também. Quando tudo acontecia, para que fosse mais gostoso, eu imaginei que o professor fosse o senhor, com o seu ar selvagem.

– Vamos triplicar as suas penitências.

– Puxa! O senhor não peca?

– Todos pecamos, todos temos nossos segredos.

– Não vai me dizer que o senhor sai com alguma mulher aqui da comunidade, sai?

– Como se este fosse o maior dos pecados...

– Como disse padre?

– Eu quis dizer que fofocar e colocar palavras na boca dos outros é um dos maiores pecados.

– Eu não sou fofoqueira, padre. Não conto pra ninguém que quando eu espreito pela janela, para me certificar de que o Pereira não está por perto, vejo o senhor sair quase toda noite.

– A senhora devia cuidar da sua vida, Dona Carlota. Aconselhar e ouvir o pecado de toda uma comunidade afeta o pastor, compreende?

– Para alguns pode ser pastor, eu vejo o senhor como lobo.

– Como?

– Nas minhas fantasias eu sou a ovelhinha.

– Que Deus lhe acompanhe, minha filha.

Como acontecia das outras vezes, tudo se acalmava. Na lua cheia seguinte alguns animais desapareceram.

O inverno chegou e com ele uma temporada de chuvas. Com o céu encoberto, muita gente esqueceu da fase da lua. Sentiam-se seguros em suas casas e para suas aventuras.

Certa noite, o professor Leovegildo esperou o movimento da rua se acalmar e foi em direção da casa do delegado. Dona Shirley disse ter comprado uma lingerie nova.

Quando chegou, estranhamente, a porta já estava aberta. Não se ouvia nada. Quando o delegado não estava em casa, ela colocava a música combinada para tocar. Leovegildo resolveu espiar por uma das janelas da casa. No momento em que aproximava o ouvido, algo saltou pela janela, levando consigo uma das folhas da veneziana que atingiu em cheio sua cabeça.

Atordoado, visão turva, ele viu a monstruosidade do ser que se afastava rapidamente. Leovegildo pareceu ter visto um crucifixo no pescoço da fera.

O professor hesitou, mas entrou. Sentiu o cheiro de enxofre. No quarto, sobre a cama, os restos de Dona Shirley tingiam de vermelho os lençóis. O coração, arrancado do peito, ainda parecia pulsar.

Leovegildo vomitou até quase virar do avesso. Tocou o rosto desfigurado da mulher, fechando seus olhos. Apavorado, saiu correndo debaixo da forte chuva, algumas vezes iluminado pelos relâmpagos da tempestade. Não percebeu quando cruzou com Bentinho, deitado sob a marquise do armazém de secos e molhados.

Quando o delegado chegou em casa, ficou transtornado. Pegou todas as armas que tinha e acordou todos os homens da vila. Com armas de fogo, facas e foices, saíram em busca da fera.

O professor, não queria se expor, mas não aguentou ficar sem fazer nada. Precisava dividir aquilo com alguém. Lembrou que algo dito em confissão não poderia ser revelado pelo confessor, então resolveu procurar o Padre.

A porta principal da capela estava apenas encostada. Entrou e se deparou com outra cena estranha. Padre Cristóvão, apenas de cueca, ajoelhado em frente ao altar, usava as disciplinas se autoflagelando. Suas costas sangravam. No interior da capela, o mesmo cheiro de ovo podre do enxofre.

Cristóvão, quando percebeu a presença, saltou rapidamente, deixando à mostra um crucifixo de prata sobre o peito. Segurou-o e apontou em direção à sombra que se aproximava.

– Sou eu, padre. Professor Leovegildo. Preciso me confessar.

– A esta hora, meu filho. Deixe para amanhã.

– Depois será tarde!

– Espere alguns minutos, preciso colocar minhas vestes.

Leovegildo ajoelhou-se num dos bancos e pedia que Deus cuidasse da alma de Dona Shirley. Apesar dos defeitos, ela era uma boa pessoa. Aplacou a solidão dele em muitas noites. Imaginar aquele corpo, antes cheio de vida, inerte, destroçado, lhe fazia muito mal.

O padre retornou. Pareceu ter passado rapidamente pelo chuveiro. Sentou-se ao lado de Leovegildo.

– A confissão vai ser aqui mesmo?

– Sim, aqui os únicos ouvidos são os de Deus.

Leovegildo voltou seus olhos para o altar, buscando forças para contar o que tinha visto.

Quando baixou os olhos, no degrau que dava acesso ao púlpito, mesmo sob a tênue luz que tremulava no ambiente, percebeu um pequeno pedaço de tecido. A mesma estampa da calcinha que vestira Dona Shirley.

– Vamos lá, meu filho, me conte o que houve?

Ele permaneceu em silêncio, enquanto organizava os pensamentos.

– Talvez eu não precise lhe falar, padre. Acho que o senhor sabe mais do que eu sei. Me diga padre, o senhor protege a criatura?

– O que insinua?

– Minha cabeça está confusa. Acabei de sair da casa do delegado. Dona Shirley foi destroçada com violência. Vi uma criatura peluda, forte, cheirando a enxofre saltar pela janela. O licantropo carregava um crucifixo no pescoço, parecido com o seu. Sua igreja cheira a enxofre também e aqui, o mesmo tecido da roupa da vítima. O senhor sabe quem é a fera?

– Você está enganado – disse olhando nos olhos de Leovegildo.

– Seus olhos, estão avermelhados. Não, você não protege a criatura, você é a criatura.

O professor saltou, pegando um dos pesados candelabros da igreja.

– Não grite! Ambos temos nossos segredos.

– Mas eu não matei ninguém.

– Em qual palavra as pessoas vão acreditar, na de um padre ou na de um professor, amante da mulher do delegado e de outra meia dúzia de senhoras?

– Sabe, padre, nunca vi o senhor como uma pessoa má, por que faz isso?

– Não é uma questão de escolha. É uma maldição.

– Mesmo que seja uma maldição, por que se esconde atrás de uma batina?

– Sendo padre, posso amenizar um pouco da dor daqueles que faço sofrer.

– Não poderei esconder isso.

O aparente silêncio do interior da capela foi rompido com a entrada da turba armada.

– Lá está o lobisomem! – Gritou o delegado.

As pernas do padre Cristóvão fraquejaram. Não reagiria. Melhor, a maldição acabaria.

Leovegildo se sentiu aliviado, mas foi surpreendido quando levou um soco no rosto e foi arrastado por dois sujeitos muito fortes.

– Delegado, o que está acontecendo? Está prendendo o homem errado!

– Bentinho, diz para o professor o que foi que você viu.

– Eu não vi nada não, delegado – respondeu, temendo que o professor se transformasse diante de todos.

– Seu bêbado frouxo. Ele viu o senhor saindo da minha casa. Como explica esse sangue escorrido em sua camisa, professor?

– Não fui eu. Padre diga a eles o que aconteceu!

– Sinto muito, mas como confessor, não posso expor o que me foi dito.

Leovegildo não viu mais nada, depois que levou um golpe na cabeça. Quando acordou, já estava seminu, amarrado a um poste, sobre a lenha de uma fogueira posta a seus pés. A multidão estava furiosa.

– Faça um último pedido a Deus, meu filho – disse-lhe o padre.

– Que o senhor queime no inferno, padre.

– O delegado portava uma lança improvisada, feita de um cabo de enxada. Na ponta, o crucifixo de prata, antes usado pelo padre.

Pereira, aproximou-se e disse em seu ouvido:

“Lobisomem ou não, esta noite não foi a única em que o senhor entrou na minha casa. Bentinho me contou tudo”.

Num único golpe, a ponta maior do crucifixo penetrou o coração de Leovegildo. Dizem que ele uivou como um lobo. Mas quem acredita nas histórias populares.

Dois dias depois, o padre Cristóvão partiu, dizendo-se abalado por tudo o que aconteceu.

O lobisomem nunca mais apareceu na vila. Ressurgiu numa outra cidade, distante. A mesma cidade onde agora morava o professor Cristóvão, o homem amaldiçoado por ser o último filho de sete irmãos, o descendente do grego castigado pelos deuses.

 

 





quinta-feira, 9 de março de 2023

Simbologia precisa-se


 

Com um suspiro de satisfação, Raquel colocou o símbolo final no longo e trabalhoso texto que passara os últimos dois dias a escrever. Fora complicado, estivera, até, várias vezes à beira de desistir ou, no mínimo, de o simplificar, mas ainda bem que não o fizera, estava uma maravilha, modéstia à parte...

E iria, sem dúvida, melhorar imenso a sua posição no grupo, quem sabe, poderia até ser o necessário para lhe dar acesso ao Clube Platina de que todos falavam, embora sem grandes certezas de que existisse. Mas fazia todo o sentido que um organismo tão complexo como aquele não se ficasse por um mero escalão de Ouro a que até nem era muito difícil aceder.

Depois de se estirar várias vezes, muito “à gato”, para tentar contrabalançar as muitas horas que passara sentada, Raquel dirigiu-se para o abastecedor de bebidas e serviu-se de um bom café simples e forte. Não que precisasse de se manter acordada, mas, após tanto tempo parada, sabia que devia ir fazer uma pequena, mas enérgica, caminhada e precisava de uma injeção de cafeína que a aguentasse até a adrenalina entrar em ação.

Depois de mudar de roupa, desligou e meteu no seu esconderijo o pequeno tablet que usava para os trabalhos dos Simbólicos, ativou os alarmes, os oficiais e os que criara, e só depois saiu de casa.

Como, afinal, se sentia mais enérgica do que seria de esperar, decidiu ir até ao parque mais próximo, onde havia bons trilhos de caminhada. Assim não teria de estar atenta a veículos e outras pessoas, podendo divagar à vontade.

E foi o que fez. Enquanto respirava o ar puro daquele espaço verde e acelerava o passo numa quase corrida pôs-se a pensar na primeira vez que ouvira falar dos Simbólicos e do muito que evoluíra desde então.

Estava no seu último ano de estudos e decidira tentar, mais uma vez, fazer uma pequena pesquisa na biblioteca. Esta estava às moscas, como sempre, só lá ia quem queria investigar “livros a sério” e, muito francamente, só muito poucos os conseguiam ainda ler. A língua, ou antes, as línguas tinham mudado radicalmente, tendo dado lugar a uma nova linguagem de abreviaturas e símbolos sem regras gramaticais ou outras e que estava sempre a evoluir. E a maior parte dos elementos das gerações mais novas já só comunicavam, por escrito ou oralmente, usando este idioma universal e muito simplificado.

Para os mais idosos, e o avô de Raquel era um deles, não passava de uma algaraviada sem nexo. Mas poucos resistiam e estava, de facto, a tornar-se a única língua vigente no mundo.

Ficou, pois, intrigada ao ver um grupinho de três jovens sentados a uma mesa com vários calhamaços à sua frente. Falavam entre si e tiravam notas copiosas, outra arte em extinção, a conversão automática de voz em texto matara-a.

Reconheceu vagamente um dos rapazes, tinham pelo menos uma aula em comum e via-o sempre sozinho, tal como ela. Decidiu, pois, aproveitar essa vaga ligação para investigar o que estariam a fazer.

E fora assim que descobrira os Simbólicos.

Eram, basicamente, um grupo de pessoas de todo o mundo que queriam usar os idiomas tal como existiam antes da disseminação descontrolada da nova linguagem. A ideia até nem era fazer voltar tudo ao antigamente, só queriam ter a possibilidade de escolherem livremente.

E foi com grande espanto que Raquel descobriu que eram vistos como um grupo anarquista e perigosíssimo, a ser destruído a todo o custo! Também esta era uma atitude comum a todos os governos do mundo, qualquer que fosse a sua “cor”, com exceção, claro, de uma ou duas chamadas ditaduras que, remando contra a maré, proibiam era a nova língua.

Daí o enorme secretismo que rodeava todo este movimento. Raquel veio eventualmente a saber que só lhe tinham revelado a situação porque o tal rapaz conhecido, o Jorge, já a vira várias vezes a ler pequenos textos antigos, por isso decidiram iniciá-la quando ela lhes falou naquele dia.

E Raquel aceitou, entusiasmada, pareceu-lhe tudo uma brincadeira muito divertida.

Basicamente, e como a nova língua só usava abreviaturas e símbolos, os fundadores do grupo tinham criado uma lista em que esses mesmos elementos não representavam palavras mas sim frases inteiras escritas em “língua de gente”, como lhe chamavam.

Por exemplo, um Sol pequeno queria dizer “Bom dia, como estás?”

E a ideia era os membros escreverem algo a sério que depois convertiam no que parecia ser, à primeira vista, um texto moderno.

É claro que havia o problema de já ninguém sabia ler ou escrever a sério – exceto os poucos que ainda estudavam línguas antigas e que eram fortemente desencorajados a fazê-lo, começando pelo custo caríssimo e sem a menor bolsa de estudo... Mas tinham contornado esse problema dando acesso a meios de aprendizagem que começavam por ser muito simples, pelo aspeto teriam até sido para crianças!

E, pequeno detalhe, eram aconselhados a ter um tablet totalmente reservado para este uso e a guardá-lo muito bem a menos que quisessem vir a ter problemas com as autoridades.

Raquel lançou-se de corpo e alma aos estudos e às mensagens, tornando-se em breve fluente na lista que lhe tinham enviado. E foi quando descobriu que havia vários níveis no movimento, ao ser convidada a passar para o Grupo Madeira.

Novos estudos e listas foram-na fazendo subir de nível, estando agora no Ouro, com uma listagem de 33 000 elementos, muitos deles a representarem frases e ideias bem complexas. E não era nada fácil, como há um número finito de símbolos e de abreviaturas, isso fora contornado acrescentando-lhes pequenos detalhes, pontos em vários sítios, sombreados diferentes, enfim, um sem acabar de detalhes capazes de mudarem totalmente o significado de um texto ou, até, de o transformar numa algaraviada sem nexo.

Os textos também eram agora diferentes, de simples mensagens a outros elementos tinham passado a autênticas dissertações sobre vários assuntos, alguns propostos, outros de livre escolha, e, até, a composições originais. Como a que passara dois dias a compor e que fora, muito francamente, o seu melhor de sempre.

Inicialmente perguntara-se – e indagara abertamente – porque se davam ao trabalho de fazer a conversão simbólica. Mas se tivesse pensado um bocadinho teria logo visto que isso permitia estar a escrever ou a ler em público, desde que tivesse memorizado a lista. Quanto aos elementos desta, bom, era facílimo introduzi-los no aparelho usado em vez dos que vinham de fábrica.

É que as precauções aconselhadas, e que aumentavam de nível à medida que se ia progredindo, só diziam respeito ao tablet que continha o material de estudo e a lista completa, ou seja, símbolo e significado. No aparelho público, fosse de que tipo fosse, só podiam estar os símbolos, sem mais nada, tal como se fossem os da língua que era, para todos os efeitos a oficial.

Assim, quanto mais decorassem mais podiam divertir-se a escrever coisas proibidas à vista de todos. E Raquel fora sempre muito boa nisso, mal subia e tinha uma nova lista atirava-se a ela e não descansava enquanto não a soubesse de cor.

E era por isso que suspeitava que tinha de haver algo mais acima do Ouro, pelo menos mais um nível ou, quem sabe, vários. É que uma boa parte das dificuldades que tiveram com o seu último texto tinham vindo, precisamente, da ausência de simbologia que dissesse o que queria dizer.

Infelizmente, não podia perguntar a ninguém, só conhecia pessoalmente o grupinho da biblioteca e tinham perdido o contacto, exceto com Jorge, mas este tinha desistido pouco depois, por isso não a poderia ajudar.

Refrescada pelo passeio e ar puro, Raquel decidiu voltar para casa. E durante todo o percurso, uma única ideia repetia-se vezes sem conta na sua cabeça, “Será que tenho uma mensagem de passagem de nível à minha espera?”


Luísa Lopes

Foto de Unseen Studio na Unsplash





sexta-feira, 3 de março de 2023

COMO DAS OUTRAS VEZES


eu tive que me perder

para me encontrar

retroceder para seguir

adiante no meio do escuro.

 

um porto seguro

me esperava com

a tenacidade de uma

ave migratória em idílio.

 

o ninho estava quase

pronto na escarpa do morro

para abrigar-nos da maldade

e gerar um novo ser, que se foi!

 

 





terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

A Obra Nasce

Na Madrugada dos Tempos – Parte 7

 

Deus quer, o Homem sonha,

A obra nasce.

 

Fernando Pessoa

Escritor português

(1888-1935)

 

O pequeno grupo de nómadas estabeleceu-se na aldeia e gradualmente, o clima de desconfiança da maioria dos vizinhos desvaneceu-se. Claro que havia exceções, sendo as mais conhecidas Fikri e Naci, a que se juntava Cemil, um dos irmãos de Erem, que continuavam a desprezar os recém-chegados. Acreditavam que eles eram deserdados da sorte, sem casa e atacados por todos, porque não tinham o favor dos deuses e estes não iriam gostar que os acolhessem.

Naci estava principalmente sensível devido ao estado de saúde da sua mulher Su, que nunca recuperara completamente desde o ataque aos homens-macaco. Nehir lograra fechar o ferimento, mas ocasionalmente atacavam-lhe “uns calores” muitos fortes e caía desacordada com o corpo todo a ferver. Nessas alturas, a curandeira passava o dia inteiro a tentar baixar-lhe a temperatura com folhas de videira molhadas na testa e fazendo-a engolir pastas de alho e mel para combater os maus espíritos do corpo, mas após cada uma dessas crises, ela estava mais fraca que antes.

Ignorando as vozes discordantes, vários aldeãos emprestaram peles e ajudaram os nómadas a erguer quatro tendas nos limites da povoação. Como agradecimento, a noite fria em volta da fogueira foi abrilhantada por Beki e os irmãos que fizeram um pequeno espetáculo de malabarismo e dança. O ritmo era mantido pelo bater sobre peles esticadas em vimes entrançados num círculo. Todos ficaram extasiados pelas cabriolas acrobáticas dos jovens, pela percussão e pelas cantigas das mulheres. Gritos de alegria e assombro ecoaram na noite sob o límpido teto de veludo ponteado a prata antes de todos irem descansar.

Nos dias seguintes, Erem avisou Alim que se esperava deles a participação em todas as atividades da comunidade e, entre elas, a construção do santuário. Todos os que tivessem força para levantar um pote de barro cheio de água teriam de ser recrutados para as tarefas. Foi uma forma de os integrar e dar mais confiança.

Após consultar os astros e conferenciar com as outras mulheres, Zia anunciou a chegada da Noite das Sombras, que marcava o início da estação fria[1]. Nesta noite, dizia-se, os espíritos dos que já se foram podiam vaguear entre mundo das sombras e o dos vivos. Havia até quem afirmasse que, nas noites de nevoeiro, podiam-se distinguir as fogueiras do lado das sombras. Era uma noite de apreensão, pois representava o fim do período de maior abundância de caça e frutas. Os cereais estavam já moídos em farinha que se esperava que aguentasse muitos meses e as cabras e ovelhas mais velhas abatidas e a sua carne seca para consumir durante o inverno. As peles e os ossos resultantes da matança armazenaram-se para utilização futura.

Zia preparava a cerimónia que daria as boas-vindas ao inverno; a época dos dias frios em que o sol dava mostras de morrer e no coração de todos ficava o medo de que não voltasse. Em volta dos ídolos de Swol e Mensis já se erguiam quatro imponentes megálitos, dos vinte e quatro previstos. As pedras eretas foram coroadas com ramos de oliveira e colocaram-se coroas e folhas nos locais onde se previam erigir as restantes.

Desde o início da construção existiu grande polémica acerca do número de pedras a erguer no santuário e se no início pensaram apenas em dezasseis, cedo começaram as discussões se não deveriam, isso, sim, representar toda a aldeia e erguer uma pedra por cada um. Nem assim chegavam a acordo, pois, se nascesse alguma criança, teriam de erguer rapidamente outra pedra, ou retirar se morresse alguém. As discussões em redor da fogueira por vezes eram apaixonadas e se uns achavam serem precisas muitas para honrar os deuses, outros havia que não queriam arrastar mais do que as estritamente necessárias… ou mesmo nenhumas. Por fim, foi Lemi quem deu a solução para resolver o dilema; cada homem tem dez dedos nas mãos e a mulher, porque um homem não deve viver sozinho, tem outros tantos dedos. Não teriam uma pedra para cada homem e cada mulher, mas apenas duas vezes dez pedras, isso simbolizava todo o clã, o número de dedos com que produzem tudo o que necessitam para sobreviver! Após uns segundos a “digerir” a ideia, ergueu-se um clamor de aprovação de toda a audiência. Zia acalmou-os erguendo as mãos e pedindo a palavra: “Concordo com as vinte pedras.” — Informou ela erguendo a voz acima do burburinho. — “Mas acrescento quatro! Quatro pedras que definirão esse círculo de dez mais dez e defini-lo-ão da mesma forma que é marcado e definido o círculo da nossa vida. Como nascemos, crescemos, amadurecemos e morremos, também Swol assim é. Renasce ao fim de muitos dias moribundo e começa a ganhar força, a erguer-se no céu e a trazer a luz por mais tempo, trazendo o cio nos dentes e despertando a caça. Depois reina sobre o céu, inchando os dias com luz e calor, dourando as espigas e chamando as grandes manadas de auroques e bisontes. Mais tarde começa a perder a força, no período das colheitas, enquanto se aproxima do fim da terra, até ficar moribundo. Fica depois quase morto com a chegada dos grandes frios, quando as sombras ameaçam a luz e trazem a incerteza do seu renascimento… quatro pedras do ciclo da vida de Swol.”

Zia era a autoridade incontestável na marcação dos dias e todos confiavam cegamente nas suas indicações de quando era a época para deitar as sementes à terra, quando haveria mais abundância de caça ou quando seria a altura de o rio transbordar. Com os muitos conhecimentos passados de pais para filhos, ela possuía uma pele onde estavam meticulosamente atados um conjunto de ossos e paus enfileirados que era um dos seus guias. Por ali conseguia seguir as fases da lua e complementava as suas medições com a observação do tamanho das sombras projetadas por um pau espetado no chão para distinguir os solstícios e os equinócios. A mulher, munida daquele compêndio dos saberes dos antigos, era um calendário vivo.

Dos quatro grandes monólitos que começavam a demarcar o círculo, o último, erguido apenas no dia anterior e era o que representaria o início da estação dos grandes frios, a morte de Swol[2]. Estava perfeitamente alinhado com o sol do meio-dia e a sua sombra alongada tocava o ídolo correspondente ao astro-rei no centro do complexo.

Zia fazia-se acompanhar de uma Su débil e insegura, que ninguém conseguira demover de colaborar na preparação das cerimónias. A sogra obrigava-a a que estivesse sentada a entrançar as plantas para as coroas, enquanto as restantes mulheres iam recolhê-las entre as árvores da floresta. Apesar do frio que já dominava, aquele dia mostrava-se com um sol invulgarmente quente que fazia transpirar os laboriosos celebrantes.

Su, tendo terminada uma pequena coroa verde que adornou com alguns fios dourados de feno, ergueu-se e caminhou até ao local onde haviam enterrado Ediz. A terra remexida, na sombra de um dos megálitos, ainda estava húmida pela geada noturna e a rapariga baixou-se para pousar a singela homenagem no lugar onde estaria a cabeça do guerreiro. Quando se ergueu, sentiu que todo o mundo começara a correr à sua volta e as enormes pedras rodopiavam e cabriolavam ameaçando cair sobre ela. A cabeça parecia explodir com uma dor insuportável e soltou um grito lancinante antes de cair desacordada.

Quando Naci chegou com os grupos que arrastavam os grandes toros de lenha para a fogueira no santuário, já a sua jovem esposa havia partido deste mundo. Ele soltou gritos furiosos, com os olhos injetados de sangue, empurrou quem o tentou acalmar e nem mesmo a mãe conseguiu que sossegasse. Entrou como um ciclone na sua casa, fazendo fugir as mulheres que velavam e ajoelhou-se banhado em lágrimas ao lado do corpo débil e sem vida da companheira. Saiu depois a correr cegamente na direção da floresta gritando imprecações contra os deuses.

 Ficava assombrada com tal perda a celebração do primeiro dia de inverno. Alguns diziam que uma morte no recinto do santuário não era um bom presságio, mas logo outros contrapunham que ela morrera na sua casa e não ali e, mesmo que assim não fosse, não era aquele também um monumento aos mortos? Embora com muito menos ânimo, resolveram continuar com os preparativos.

Erem, que começava a ficar preocupado com Naci, mandou dois homens procurá-lo, mas eles voltaram passado algum tempo sem o encontrarem. Acrescentaram que ele era um caçador experiente e conhecia bem as florestas e, se não quisesse ser encontrado não seria. Com a noite a cair, Zia estava preocupada porque o cadáver de Su não devia ficar insepulto depois do por-do-sol. Se isso acontecesse, ela não conseguiria encontrar o caminho para as grandes pastagens nos braços da Da Matter[3]e ficaria eternamente a vaguear sobre a terra como um Ansu[4] perdido.

A sacerdotisa tomou a iniciativa e mandou que fossem buscar a infeliz para o santuário; ficaria ali sepultada, no local onde tanto se esforçara para estar. Os filhos Zilo e Nali, o rapaz com quatro e a rapariga com dois anos, assistiram tristemente ao sepultamento abraçados pelas tias. A avó cantou as orações rituais presididas pelo olhar atento do avô, após o que todos caminharam sobre a sepultura acabada de tapar.

Os últimos laivos de luz desapareceram no horizonte e a noite aparecia fria, com um ar fino e gélido e a Lua Nova impercetível no céu. Um murmúrio de espanto e receio percorreu os aldeãos assim que se aperceberam de dois pequenos grupos com seis ou sete homens e mulheres cada, composto apenas por estrangeiros que se aproximaram timidamente do santuário. Lemi, encabeçando uma improvisada segurança com vários elementos do clã, questionou as intenções dos recém-chegados que exibiram algumas oferendas compostas por coroas de flores secas, peles e mesmo cabritos. Eram oriundos de duas aldeias próximas e pretendiam assistir à cerimónia, algo a que Erem assentiu com um gesto magnânimo.

A audiência amontoou-se vocalizando um som profundo e gutural, em volta do círculo definido pelas pedras já erguidas e os locais das próximas. Archotes compridos, feitos de vimes secos e gordura animal, crepitavam e pingavam no chão onde estavam espetados, deixando a audiência numa penumbra irreal. Iluminada pela luz bruxuleante da grande fogueira, Zia orou ao Sol para que voltasse e não abandonasse os seus filhos, enquanto a noite se enchia de pequenos pontos brilhantes e a Via-Láctea impressionava como um imenso rasgão no céu. A percussão nas peles esticadas sobre as coroas de vimes fazia tremer o peito e aumentava o temor e o sentimento de reverência pelos deuses.

Com maestria, a sacerdotisa espetou a faca de sílex no pescoço de uma pequena cabra e sangrou-a para um recipiente de barro. Em seguida aspergiu as chamas e a assistência com o sangue obtido gritando para os céus que aquela era uma oferta dos filhos de Sol que pediam para que regressasse rápido e trouxesse o ventre cheio de caça e espigas douradas. Dois dos rapazes mais jovens aproximaram-se dela sendo marcados em ambas as faces com três dedos ensanguentados, após o que voltaram o cadáver da cabrita de patas para cima expondo o ventre para Zia. A mulher do chefe fez um corte profundo expondo as entranhas do animal, sem as cortar. Extraiu os intestinos e todos os órgãos da carcaça, distribuindo-os cuidadosamente por vários recipientes, deitando especial atenção ao coração e ao fígado, que cortou em vários pedaços, chegando mesmo a comer alguns. Ergueu-se depois, com os braços abertos ao céu, as mãos escorrendo sangue e gritou: — Swol voltará! Vem aí muito frio, chuva e neve, onde Ele parecerá moribundo e ausente, mas não esquecerá os seus filhos e regressará para nós! Swol! — Gritou por três vezes, recebendo o eco de felicidade de toda a audiência.

Com o sangue recolhido, a sacerdotisa marcou cada um dos monólitos com uma mão carmim de dedos bem abertos.

Durante toda a cerimónia, o chefe do clã não tirava os olhos da orla da floresta, sempre esperando ver regressar Naci.

Quando todos se recolhiam, Zia queria organizar buscas pelo filho, mas foi Erem quem a desencorajou. Na busca por Naci, no meio da floresta e na escuridão, arriscavam-se a perder mais alguém.

— Por muito que me custe — o chefe sentenciou com as lágrimas nos olhos —, ele é um homem feito e um dos nossos melhores caçadores e pisteiros. Sabe para onde foi e saberá encontrar o caminho de volta… se quiser voltar.

A noite para ambos foi insone; de olhos abertos e em silêncio, sempre a esperar ouvir os cães a assinalar a chegada de alguém. Acabaram por adormecer completamente esgotados para serem chamados às primeiras horas do dia. Naci havia chegado e estava no santuário.

Correram para lá; o filho de ambos, com o rosto marcado por vários pequenos cortes e equimoses, estava embrulhado numa grossa pele de urso e sentado ao lado da sepultura da mulher. Na entrada do santuário, havia duas estacas exibindo as cabeças decepadas de dois homens-macaco.



[1] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro

[2] Refere-se ao solstício de inverno, 20/21 de dezembro

[3] Deusa mãe

[4] Espírito

 

 

 

 

             6 - Os Outros Homens

Parte 6 – Os Outros Homens

A seguir:         

Parte 8 – O Mundo Pula e Avança

Na Madrugada dos Tempos

Introdução – Na Madrugada dos tempos

Manuel Amaro Mendonça

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sábado, 25 de fevereiro de 2023

Rua do Salitre, 87


Glória já tivera melhores dias. Quando casou, vinte e cinco anos antes, era uma estampa. Depois deixou-se engordar um bocadinho. Mas não terá sido por isso que o marido se embeiçou por uma mais nova; terão sido as circunstâncias. Tinha aceitado um emprego de técnico de frio em Mangualde e só vinha ao fim-de-semana a Lisboa. A Beira Alta é fria, as noites foram muitas. À segunda vez que Humberto telefonou a desculpar-se que tinha de acabar um projeto, que nesse fim-de-semana não dava, Glória meteu pernas ao caminho.

O grau de intimidade que encontrou e a longevidade da relação ditaram o corte. Cerce, ríspido, doloroso. Glória não queria fazer o papel de tantas, que iam alimentando a esperança de que o caso do marido não passasse de um devaneio temporário. Nem se via a perdoar aquilo que lhe doía tanto por dentro.

Durante uns três ou quatro anos, a queimar os 50, tentou reinventar um arremedo dos tempos de solteira, para contrariar a solidão — bares, discotecas, encontros furtivos —, mas já não tinha vida para aquilo. Os conhecimentos sucediam-se mas não duravam. Aos poucos foi ganhando um cansaço inultrapassável. Começava a não ter paciência para mais encontros, mais jantares, mais quecas fugazes e quase sempre insatisfatórias.

A certa altura, depois de melancólicas meditações, percebeu que não queria pedinchar companhia nem carinho e decidiu que não precisava de homens para nada. Podia fazer o que quisesse, sem controlos alheios; podia sair ou saborear a liberdade de estar sozinha. Reconheceu a profundidade da intimidade de se recolher consigo própria. E tudo isso lhe dava uma saborosa autoconfiança.

Não estava a inventar nada, claro. Há muito que homens e mulheres emancipados, assumiam essa opção, que agora tinha nome — Solitude: estar sozinho por escolha, e não dar guarida à angústia da solidão, antes pelo contrário.

Como em tudo, teve de fazer aprendizagens, algumas trabalhosas, mas, inesperadamente, na que julgava ir ter mais dificuldades, conseguia resultados surpreendentes: os níveis de deleite sexual que atingia sozinha passaram a superar, de longe, os prometidos por um macho.

Esta decisão foi, em parte, causada pelo contexto criado, então, com a morte da mãe. Glória herdou o andar dos pais, um primeiro andar antigo, por cima do seu, na Rua do Salitre, e calculou que podia sobreviver bem com as rendas desse espaço, em vez de aguentar o emprego num dos clubes de vídeo, que, nesse ano de 87, cresciam como cogumelos e se atropelavam uns aos outros.

Mudou-se para o andar da mãe e começou a arrendar o rés-do chão alto, em três fatias: a ala direita, que tinha cozinha, a um casal empregado; na ala esquerda, um quarto independente, a um fulano casado, que só lá ia uma ou duas vezes por mês; e um quarto grande, praticamente uma suite, a estudantes ou empregados. Ultimamente, tinha lá um rapaz que acabara de arranjar emprego na Regisconta.

Certa noite de sábado, enquanto se consolava como tão bem sabia, começou a perceber um chiado ténue e repetitivo, que a distraía. Apurou o ouvido e pareceu-lhe que vinha de baixo. Seria possível? Que situação divertida se o rapaz estivesse também em preparos de autocomprazimento.

Sem fazer ruído, desceu para o tapete e aplicou o ouvido ao soalho. Sem dúvida; por baixo do chiado da cama, percebia-se nitidamente que o rapaz ofegava e não demorou a concluir com uma expiração violenta.

Na noite seguinte, preparou-se com um copo, para amplificar o som. Então, de gatas em cima do tapete felpudo, de ouvido esquerdo colado ao copo pousado no pavimento, foi assistindo à respiração apressada do jovem, tão presente como se estivesse no mesmo quarto, a observá-lo. Com um sentimento gostoso de transgressão, tentou-se a fazer chegar um dedo médio aonde se fazia urgente. Quando o som de um urro abafado lhe atingiu o tímpano, a sua excitação disparou e não pôde evitar espasmos e tremores de pernas, que ameaçavam denunciá-la. A pujança e o entusiasmo de um homem real eram muito inspiradores.

A constatação deste facto fê-la reavaliar as suas opções. Continuava firme na decisão de viver sozinha e preservar essa liberdade, mas, nada a obrigava a respeitar a dieta. Com 56 anos, havia uns quatro que não estava com um homem... Admitiu que tinha saudades. E, de repente, aquele jovem de 19 anos tornou-se objeto da sedução de Glória.

Porquê aquele? Estava à mão, era jovem e algo ingénuo, medianamente bonito e robusto. E a proximidade e o ascendente de senhoria, prometiam-lhe tarefa facilitada. E comando das operações. Não era propriamente um direito de pernada, mas o rapaz estava no seu território... Porque não assumir um direito de sedução? — argumentava, em divagações demagógicas. Por outro lado, já lhe surpreendera olhares não indiferentes aos seus atrativos.

Podia ser seu filho, mas não o via assim. A diferença de idades era grande, sim, mas isso nunca foi entrave, para quem deseja. Aliás, Glória acarinhava o exemplo de “A Primeira Noite”, com o Dustin Hoffman. A coerência do filme era perfeita, apesar de uma diferença de idades semelhante. Estava decidido: avançaria.

Durante toda a semana, premeditou a estratégia. Atacaria a meio da manhã de domingo, antes de ele se levantar. Entregar-lhe a roupa lavada seria o pretexto para entrar no quarto. Diria que pensava que já tinha saído. Na altura, o seu improviso ditaria a continuação da aproximação.

Na sexta, pensou tê-lo ouvido tossir. Melhor. Entraria com a roupa, mas também com Vic, para lhe esfregar o peito, e um chá morno. O chá dava para se sentar na cama, a dar-lho; o Vic levava as mãos dela para o tronco nu dele. A partir daí, era velocidade de cruzeiro.

O que vestir? Uma blusa ligeira e larga, ou um roupão, sem nada por baixo? A meio da manhã, era compreensível o roupão. A partir do momento em que ele insinuasse uma mão por dentro do roupão dela, estava “perdido”. E havia mil e uma maneiras de o levar a tal gesto.

Nesse sábado, já não quis limitar-se aos ofegos que todas as noites continuavam a chegar do andar de baixo. Ao som inspirador do Elvis, no gravador de cassetes, empanturrou-se com devaneios que começavam com “It's now or never”, com ela a entrar na porta do quarto dele e prosseguiam com aproximações sensuais cada vez mais carnais, ao embalo de “Love me tender”. O auge, avassalador, sobreveio, com a sofreguidão de “I need your love tonight”, quando a fantasia a sentou na garupa daquele alazão, a galope. Que cavalgada! Se assim corresse, iria querer voltar às sessões de hipismo sempre que apetecesse.

Pelas dez e meia de domingo, Glória deslizou para o andar de baixo, luminosa e perfumada. Apesar do ascendente, estava um pouco nervosa. Dada a situação, aquele contacto significava muito para ela. Pousou o termo nas escadas, respirou fundo e entrou. O quarto estava escuro. Deu um “bom-dia” primaveril, pousou a roupa lavada sobre uma cadeira e foi abrir as cortinas da janela que dava para as traseiras.

Quando se virou, o espanto: uma cabeça feminina assomava, assustada, no limite dos lençóis.

— Ah, uma menina! — conseguiu articular.

Enquanto uma conversa de circunstância se desenrolava, a revolta e o ressentimento cresciam no peito de Glória. «Traidor! Tantos planos, tanta esperança, para isto: uma facada nas costas, como sempre.» A certo ponto, não aguentou e assumiu a rutura:

— Senhor Abel, eu vim cá a baixo tão cedo, porque queria avisá-lo de que preciso do quarto. Uma sobrinha minha vai voltar para Portugal e precisa de um quarto em Lisboa. Não leve a mal, mas, se não se importasse, agradecia que saísse no fim do mês.

Daí a pouco, de volta à cama, com os lençóis pela cabeça, chamava-se “estúpida”, “ingénua”, “oferecida”, e soluçava em surdina, culpando a fraqueza do corpo por aquele revés que a magoava. Era tão difícil ser indiferente aos homens! Mas, vendo bem, nem era esse o objetivo. Podia degustá-los ou não; não podia era deixar-se abater quando lhe caíam mal.

Depois de saborear mais um pouco o choro e a pena por si própria, levantou-se e reassumiu a habitual postura de brio e serenidade, evocando o lema que lhe era caro: «solitude, sim; solidão, não. Ok?». Ao almoço, iria oferecer-se um porco doce e umas líchias, no Peipim, da Duque de Loulé. Pagava ela, com muito gosto. 

Joaquim Bispo

*

Imagem:

Mike Nichols, (fotograma de) A Primeira Noite, 1967.

* * *